Yakusoku no Neverland e aquilo que não te contam

Marcelo Hagemann Dos Santos
11 min readApr 2, 2019

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Olhe nos meus olhos e diga que você não é gado demais.

Nessa última quinta-feira foi ao ar o último episódio de um dos animes mais populares dessa primeira safra de animes de 2019. Baseado no mangá de mesmo nome, e publicado pela revista de mangás voltada ao público jovem, Shounen Jump, Yakusoku no Neverland já possui uma segunda temporada programada para 2020, algo que não deve ser surpresa para ninguém que acompanhou a série.

A adaptação acaba se tornando um marco para a história do estúdio CloverWorks, que na temporada passada foi responsável pelo também popular Seishun Buta Yarou wa Bunny Girl Senpai no Yume wo Minai, e cria esperanças para que o estúdio se torne uma produtora de respeito após se desmembrar da gigante A-1 Pictures, e tira um pouco o gosto ruim deixado pela adaptação de Persona5, e pelo final de Darling in the FranXX.

Contudo, não tenho como avaliar o quão bom fora o trabalho do estúdio em adaptar essa obra, porque além de ter conhecido o título pela animação sou um péssimo leitor de mangás e não saberia dizer o quão bem os elementos da narrativos dessa mídia impressa foram traduzidos para mídia animada se tentasse analisar esse ponto.

Porém, o que posso fazer é o que sempre faço, olhar para a animação e analisar como a proposta do mangá é trabalhada dentro dela. E o primeiro ponto que me chama atenção na trama de Yakusoku no Neverland é o modo como ele trata o elemento mistério em sua narrativa.

Quanto a isso, há um espectro de maneiras de se trabalhar um mistério dentro de uma história, e nas pontas desse há dois modos, duas filosofias, bastante distintas de se desenvolver esse elemento em uma obra.

A primeira delas é a mais clássica, podendo ser encontrada nos clássicos livros de detetive como Sherlock Homes ou Hercule Poirot, e envolve tratar esse mistério como um quebra-cabeça; a narrativa inicialmente enumera uma dezena de pistas, apresenta fatos, testemunhas (assim como os suspeitos) dão seus depoimentos e peritos levantam suas hipóteses. No segundo momento o detetive em questão anuncia que desvendara o mistério e reúne todos os envolvidos para revelar o que descobriu, demarcando ao leitor um ponto de transição entre a reunião das peças do quebra-cabeças e a solução do problema.

A partir desse momento o detetive começa a revelar, passo-a-passo o que cada uma das pistas lhe diziam, quais testemunhos eram verdadeiros e quais eram falsos, na base do que o detetive conseguia verificar a vericidade da fala de cada um dos personagens, quem é o culpado do caso, como o fizera, porquê o fizera, seus cumplicies, aliados, inimigos… Ou seja, todos os pequenos detalhes que estavam subentendidos até então, mas muito bem escondidos pelo autor.

Nessa modalidade de mistério o autor e leitor estão em uma relação muito parecida com a de um desenvolvedor de videogame e aquele que o joga, em que o desenvolvedor cria um desafio lógico, e mecânico, com uma solução pré-definida, e o jogador deve encontrar a solução do desafio explorando as mecânicas do jogo. A diferença aqui é que o jogo dá um retorno ao jogador quando ele encontra a solução correta para o desafio (e quando ele consegue executá-la), enquanto em uma narrativa a única forma do leitor descobrir se a sua solução é correta, ou a mesma do autor, é indo até o final da narrativa e deixar que o autor lhe apresente a solução.

Obviamente isso não se limita a vídeo-games, há outros brinquedos que também oferecem alguma forma de desafio lógico e mecânico ao jogador. VÍDEO

E é claro, não é necessário se colocar ao lado do detetive nesse tipo de narrativa para apreciá-la. É muito bem possível apreciá-la sem se preocupar em descobrir a solução antes que o autor a apresente. Afinal, se tudo estiver em ordem, o próprio ato de apresentar as pistas, e os testemunhos, e de anunciar a conclusão do detetive deve ser engajante para o leitor. Mas o ponto aqui é que, se o autor conseguiu atingir o seu objetivo, é possível que o leitor chegue a mesma conclusão que o detetive se ele ler com bastante atenção o livro até o ponto em que o detetive anuncia ter solucionado o caso.

No outro lado do espectro, uma narrativa que se baseia em um mistério também pode manter seu telespectador interessado e curioso a respeito do que realmente se passa naquele mundo ficcional escondendo informações importantes do mesmo.

Seja ocultado encontros, não mostrando pistas ou simplesmente escondendo acontecimentos importantes, narrativas que tendem por esse caminho costumam possuir personagem que possuem muito mais informação, sabem mais do que quem está acompanhando a trama do lado de fora.

Obras nesse viés costumam ter muitas cenas e diálogos cortados, incompletos, personagens reagindo a descobertas, sem mostrar o que descobriram. Tudo para não apenas manter o leitor curioso a respeito desse mistério como ciente de que ele não sabe de tudo.

Ao mesmo tempo não se trata apenas de esconder algo do telespectador o tempo todo. Essas narrativas também inserem elementos e informações a trama de maneira constante, de modo que há sempre algo novo para manter o leitor engajado com a história sendo contada, e também vários dessas informações e elementos acabam mudando a percepção da trama, sendo esclarecendo as motivações por trás das ações de certos personagens, ou mesmo tornando o mistério ainda mais profundo do que aparentava inicialmente.

Em resumo, se fosse para definir de maneira breve as duas formas de se construir um mistério em uma narrativa, diria que a primeira consiste em sugerir para depois explicitar, enquanto a segunda baseia-se na ideia de esconder e depois mostrar.

Mas como disse antes, não se trata aqui apenas de duas maneiras distintas e mutualmente excludentes de se trabalhar um mistério dentro de uma trama, mas sim um espectro, o que significa que é possível misturar as duas maneiras conforme o autor bem entender. E o modo como Yakusoku no Neverland misturas esses dois elementos é um dos truques que torna a trama do anime tão envolvente.

A princípio nós como telespectadores sabemos tanto quanto os próprios personagens da trama, em particular Norman e Emma. Acompanhamos suas investigações, visualizamos suas descobertas, ouvimos seus planos e sabemos de toda a preparação de Emma e Norman. Isso cria a falsa impressão de que o espectador possui tanto, se não mais, conhecimento sobre a trama que os dois. E, é claro, a narrativa usa dessa impressão para enganar o espectador em alguns momentos chave.

O primeiro momento do qual me recordo é quando Norman descobre que Ray é o espião da Mama. Nesse arco, as crianças têm motivo para acreditar que alguém os está observando e relatando suas ações para Isabella, e por isso eles testam as duas crianças mais prováveis de ocuparem esse papel: Gilda e Don.

Nesse teste, Norman revela para os dois um dos locais usados para esconder equipamento necessário para fugir da fazenda, sendo que para cada um deles é revelado um esconderijo diferente. Sendo assim, o local de onde o equipamento sumir dirá qual dos dois é o espião.

Entretanto, Norman também suspeita que Ray seja o espião da Mama, e por isso também o testa de forma semelhante. Norman então mente para Ray a respeito de quais locais foram ditos para Gilda e Don, mencionando dois locais novos. Dessa forma, Norman consegue forjar uma prova de que Gilda e Don são inocentes, e que Ray é o espião da Mama, dando fim a esse arco.

Esse arco é interessante porque releva de maneira bem simples o que move a trama dessa primeira temporada; essa guerra de informação entre as crianças e Isabella, na qual o próprio telespectador é pego pelo fogo cruzado em alguns momentos.

E ao mesmo tempo, esse ato por si só não é capaz de quebrar a impressão de termos acesso a mesma quantidade de informações que os protagonistas pois se trata apenas de uma ação solitária de Norman em um momento bem específico, e porque ele tinha motivos para acreditar que Ray era o espião, algo que nós como espectadores também tínhamos.

Há outros momentos, mas uma das primeiras falas do Ray dá a entender que ele sabe alguma coisa (nota: eufemismo) a respeito daquela casa, e ao mesmo tempo ele age como se não soubesse de nada depois que Emma e Norman contam o que descobriram para ele. O que levanta uma possível contradição entre as duas coisas, e uma grande suspeita.

O mesmo artifício é usado durante o arco final, só que de forma mais grandiosa, uma vez que a série esconde uma informação fundamental para a execução da fuga da forma com que fora feita, e estabelece uma mentira a respeito do obstáculo final que as crianças devem transpor para fugirem da fazenda: A ideia de que o abismo pós muro é intransponível e a premissa de que a ponte é a única rota de fuga daquela fazenda.

O resultado acaba não sendo tão drástico, já que no fim o que muda é o caminho feito pelas crianças para fugirem da fazenda. Mas essa mera mudança de trajetória torna mais segura a fuga das crianças, uma vez que os demônios estavam preparados para impedi-las de fugir na ponte que liga as fazendas ao restante do mundo. E ao mesmo tempo, evidencia a vitória do grupo na guerra de informações travada até então.

Outro ponto que evidencia essa vitória é o fato de que Norman já sabia que Ray pretendia se suicidar ao fim de seu tempo na casa, e que ele contara isso para Emma antes dele ser enviado. Com essa informação não apenas Emma impediu que Ray se matasse, como incorporara o plano dele ao próprio, viabilizando a fuga de ambos.

Ao mesmo tempo, Emma não se apoiou apenas na iniciativa de Ray em incendiar a casa para formular o plano de fuga da fazenda, como também inseriu as outras crianças nesse projeto e confiou a elas todas as tarefas e preparativos para a grande noite.

Emma não tomara a decisão de confiar nas crianças e contar todo o plano e a situação para as crianças por acaso ou por ser otimista (o que ela é, e bastante), mas porque ela tinha bons motivos para isso. O primeiro é pelo ponto de vista prático. Com todas as crianças cientes do que está acontecendo torna-se possível vigiar as ações da Mama e agir sem que ela percebesse, ainda mais considerando que ela estava focada na (in)atividade de Emma e Ray.

E o segundo motivo é porque ela sabia muito bem da capacidade das outras crianças de entenderem a situação em que se encontravam. Claro, Emma tem a vantagem de conhecer cada criança de perto, pois são a sua família, mas o anime também dá pistas para que o telespectador também confirme nas crianças.

Pense bem, é dito em alguns momentos da trama que o cérebro é a parte mais suculenta do corpo humano, e quanto mais desenvolvido for o cérebro, de melhor qualidade ele é. E como aquela casa é uma produtora de artigos de luxo, é fácil assumir que o cérebro de todas aquelas crianças também é, não só o dos principais.

Provendo boa alimentação, uma vida saudável, e até mesmo selecionando bebês com potencial latente de desenvolver cérebros de primeira qualidade são apenas algumas ações que uma produtora que busca pela excelência de seus produtos deve buscar. Mas tão importante que isso é oferecer estímulos para que esses cérebros possam se desenvolver. E esses não faltam nesta casa. Temos além de uma biblioteca gigantesca no meio da casa e um espaço enorme para as crianças brincarem, algo importantíssimo para o desenvolvimento do cérebro de uma criança: A socialização.

PS: Eu juro que os demônios não me pagaram para fazer propaganda dessa casa.

Em outras palavras, o espectador poderia muito bem chegar a mesma conclusão que Emma nesse momento final. Mas ao mesmo tempo também há alguns obstáculos que impedem que chegamos nessa mesma conclusão com facilidade, e são os mesmos que fazem com que a Isabella não vigie as outras crianças após a despedida de Norman da casa:

Preconceito. Pura e simplesmente, nós consideramos crianças como menos capazes intelectualmente e, até certamente medida elas são. Somos uma das únicas espécies do planeta cuja prole é incapaz de andar por conta própria desde o nascimento, cujo cérebro ainda possui um longo caminho até o seu total desenvolvimento. Mas isso não significa que crianças são incapazes de compreender conceitos complexos, e entender lidar com sentimentos de perda ou mesmo luto.

Outro ponto que nos impede de imaginar que as crianças estão agindo por trás dos panos está no fato de que a narrativa não trata as outras como um personagem, ao menos não de forma individual como o faz com Emma, Ray e Norman. Por não criarem uma identidade melhor definida para cada das outras crianças não as vemos como agentes passíveis de causar algum impacto significativo na trama, e as vemos apenas como objetos dela. São as crianças que serão salvas pelos protagonistas, e não as crianças que forem juntas dos protagonista.

E o último ponto está no enfoque na superioridade intelectual do trio de protagonista dentre as crianças daquela casa. Isso faz com que só os enxergamos como agentes da trama, e reforça o ponto anterior.

Tudo isso tem um só efeito nesse desfecho: provocar a sensação de que Emma e Ray estavam encurralados pelas defesas da casa, e que apenas um milagre, uma loucura, ou ambos, seria capaz de tirá-los daquele lugar com vida, já que não havia mais tempo hábil para formular um novo plano de fuga e escapar.

Também não poderia encerrar esse texto sem tocar em uma das principais temáticas da série; a alegoria sobre o consumo de carne, ou, mais especificamente a produção de carne bovina.

Independente da alegoria ser capaz de sensibilizar ou não o telespectador a respeito do consumo de carne, seja fazendo-o refletir a respeito do mesmo, ou o convertendo a uma dieta vegetariana ou mesmo vegana, o fato é que a proposta do anime, e boa parte de sua execução, atacam de maneira eficiente o argumento de que a pecuária extensiva (em paralela a pecuária intensiva), combinada com um abate mais limpo, rápido e sem dor para o animal, seja uma forma humana para a produção de carne, afirmado que o próprio conceito de criar um ser vivo para matá-lo e consumi-lo é por si só desumano.

Ainda que a narrativa não destrua completamente esse argumento, já que humanos e outras espécies de animais não são equiparáveis entre si num sentido pleno, e nem se posicione de maneira clara quanto a moralidade do cultivo e consumo de carne, a própria instigação dessa reflexão e da presença do pensamento de ambos os lados desse debate é um ponto bastante positivo na obra.

Por fim, apesar de considerar desde já Yakusoku no Neverland, com o seu ritmo fenomenal, e direção que apenas intensificam os pontos positivos aqui levantados, não posso terminar esse texto sem antes deixar registrado aqui meu receio quanto a continuação da série. Não apenas porque muitos leitores do mangá relatam que conforme a narrativa se estende a qualidade da obra apenas cai, como também pelo fato dessa primeira temporada apresentar e encerrar uma proposta bem definida, e para continuar com a obra para além disso, por mais que haja muito o que expandir nesse universo, é estabelecer uma nova proposta, algo que pode tanto desagradar quem se interessou pela proposta inicial, como não ser de domínio do autor, o que pode prejudicar a qualidade da obra como um todo.

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Marcelo Hagemann Dos Santos
Marcelo Hagemann Dos Santos

Written by Marcelo Hagemann Dos Santos

Rapaz de humor duvidoso que entrou essa de escrever sobre animes recentemente. Ex-aluno de filosofia e graduado em Letras, mas sempre estudando.

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