Vtubers e a Rainha de todas Elas
FunFact: Originalmente minha intenção era de publicar esse texto com o título de “O Fantástico Mundo das Vtubers”, mas a Laura (gasseruto no twitter) publicou um texto com esse exato título na Coluna Café & Matcha do site JBox, para qual trabalha como editora assistente.
Até então pouco populares por aqui, não há dúvidas que 2020 foi o ano marcado pelo estrondoso aumento da popularidade das Vtubers praticamente no mundo todo. O que antes era apenas um nicho do mercado japonês, hoje as Vtubers são um dos principais assuntos dentre os mais variados círculos otakus, por vezes sendo mais comentadas do que os próprios animes nesses espaços.
Mas como tudo que se torna popular, as Vtubers não surgiram de uma hora para outra, na verdade não é nenhum exagero dizer que o caminho até o surgimento e essa explosão de popularidade das Vtubers que observamos no decorrer do ano foi muito maior do que apenas 12 meses.
Mas, afinal de contas, o que são as Vtubers e como chegamos até aqui?
O termo “Vtuber” é uma forma curta para “Virtual YouTuber” e se refere a todo criador de conteúdo audiovisual que utiliza alguma tecnologia de rastreamento facial para animar, quase sempre em tempo real, um avatar virtual, geralmente em estética de anime, seja ele em 2d, 3d, híbrido, ou ambos, caso o Vtuber possua mais de um avatar. Em sua maioria são streamers que fazem Lives tanto para o próprio YouTube como outras plataformas, como a Twich e o Bilibili.
O termo se popularizou no fim de 2016, quando a autoproclamada Super Inteligência Artificial, Kizuna Ai, fez sua estreia no YouTube e em pouco tempo chamou a atenção de todo mundo.
Não se pode negar que Kizuna Ai foi uma chave importante para que as Vtubers viessem a nascer e se tornassem uma nova modalidade de criadores de conteúdo. Entretanto, dizer que Ai foi a primeira personagem virtual a se tornar um YouTuber, ou que ela foi a única responsável pela população desse gênero é deixar de lado uma fatia bastante interessante, e curiosa, da história da própria internet.
Apontar um começo para essa narrativa é uma tarefa um tanto quanto complexa, talvez devêssemos olhar para o nascimento do anime em si, ou de como sua estética foi se mondando, ou ainda, como essa estética passou a ser utilizada fora do contexto das obras de anime e mangá, e seus subprodutos como jogos. Mas essa seria uma tarefa muito além das ferramentas que tenho disponível, e nem sequer teria o conhecimento necessário para iniciá-la.
Contudo, para fins desse texto basta entendermos que a estética anime já estava enraizada na cultura japonesa no início dos anos 2000, o mundo todo a conhecia e reconhecia, e que personagens criados nessa estética já eram utilizados nas mais diversas áreas de marketing, para promover e dar cara a produtos. Também, a prática de antropomorfizar empresas, objetos e animais em personagens moe já era algo relativamente comum, tanto nos fóruns de discussão otakus, como dentro do próprio marketing japonês.
E é nessa época, especificamente em 2004, que o sintetizador de voz desenvolvido inicialmente no ano 2000 pela Yamaha Corporation, em parceria com as empresas Crypton Future Media e Zero-G, é lançado com o nome de Vocaloid. Isso mesmo, Vocaloid.
O software de Vocaloid possui um conceito simples, através de uma interface de rolo de notas de piano ele permite que o usuário coloque notas em uma linha do tempo, permitindo que se configure a velocidade, duração e tom de cada uma das notas, além de poder acrescentar alguns efeitos, permitindo a criação de um canto a partir de um banco de dados de voz.
A primeira versão do software recebeu inicialmente dois bancos de vozes, Lola (voz feminina) e Leon (masculina) em 15 de janeiro e 15 de março respectivamente. Ambos permitiam que o usuário criasse músicas em inglês, e tinham uma apresentação bem mais simples e direta do que aqueles que vieram em seguida. Cada banco de dados era vendido separadamente, incluíam o software (era impossível comprar o software e um banco de voz separados, eram sempre vendidos juntos), e nunca foi revelado quem proveu a voz para tais bancos. Diferente do que aconteceu com o terceiro banco de voz, também em inglês, de Vocaloid, para qual a cantora sul-africana Miriam Arlene Stockley forneceu seu voz, em 23 de agosto, ainda em 2004.
O primeiro banco de voz em japonês foi lançado apenas no dia 5 de novembro do mesmo ano, com a publicação de MEIKO (fruto da colaboração entre a Yamaha com a Crypton Future Media), que contava com a voz da cantora de J-pop Haigou Meiko. Como era de se esperar do mercado japonês na época, a apresentação de Meiko era diferente do que se tinha nos lançamentos ocidentais, cuja responsabilidade estava nas mãos da Zero-G, e em vez de apresentar o banco de voz através de uma boca genérica, ou com a uma imagem da própria cantora, Meiko foi desenhada como uma personagem de anime.
Embora a apresentação utilizasse a estética anime, a personagem de Meiko ainda representava a cantora que proveu a voz ao banco, algo diferente do que veio em seguida, em 17 de fevereiro de 2006, quando o banco de voz KAITO foi lançada para Vocaloid. Apesar de contar com a voz de Naoto Fuuga, conhecido por cantar Believe Yourself, música de Kamen Rider Agito, Kaito era apresentado como um personagem a parte, uma entidade que existia por si só, e não uma representação de Fuuga.
A estratégia de desvincular o banco de voz com o provedor da voz, assim criando um personagem de fato, pareceu dar tão certo que foi adotada em praticamente em todos, se não todos, os bancos de voz que vieram em seguida, incluindo os bancos em inglês, tornando-se, portanto, prática padrão. Além disso, essa estratégia foi responsável pela desvinculação da personagem de Meiko com a cantora real, pelo modo como esses bancos de voz passaram a serem vistos, além de ser dessa prática que surgiu o hábito de chamar esses personagens que dão cara aos bancos de voz de Vocaloids.
Mas é claro, as coisas não param por ai. No ano de 2007 a Yamaha lançou uma segunda versão para o programa, repaginando-o, e acrescentando novas funções, ao preço de que os bancos de voz da primeira versão não eram compatíveis com o novo programa. Mas como sabemos, isso não impediu que Hatsune Miku, cuja voz pertence a dubladora Saki Fujita, fizesse sucesso imediato naquele ano, e é claro, como a internet na época já provia uma forte comunicação entre o Japão e o resto do mundo, a personagem também já é famosa por aqui desde essa época, ainda que em menor grau e não simultaneamente, obviamente.
Apontar o motivo o sucesso de Hatsune em comparação com os outros vocaloids não é uma tarefa fácil. Afinal de contas, há uma dezena de fatores que podem ter influenciado em sua popularidade. Desde seu design bastante chamativo para época, que mesclava elementos futuristas, com o charme das idols atuais, além da sua paleta de cores, que fugia do que era lugar comum na época. Os anos 2000 foi uma época em que poucos personagens tinham cabelo verde, quanto menos o turquesa. Já o prata/cinza é uma cor associada com a tecnologia e o moderno, e Hatsune Miku apareceu exatamente numa época em que os robôs, o virtual, e os recentes avanços tecnológicos eram algo que encantavam as pessoas. O que mostra que a Crypton Future Media estava bastante engajada com a personagem, já que o seu nome revela que todas as suas escolhas de design foram propositais, pois, segundo a própria empresa, o nome da Vocaloid foi pensado para carregar o significado de “primeiro som do futuro” — Hatsu, primeiro (初); ne, som (音) e Miku é uma leitura nanori (名乗り), usada mais comumente em nomes, da palavra Mirai (未来), que significa futuro — , por outro lado, a escolha da cor do seu cabelo contrasta bem com os elementos futuristas do seu design, pois remetem a natureza, harmonia, som e música.
É claro, o fato de Saki Fujita ser uma dubladora novata na época pode ter chamado a atenção de certos grupos otakus em seu lançamento — Até então, Fujita interpretava uma lista pequena de personagens, dentre eles Mina Yayoi de Tokimeki Memorial. Mas não dá para negar que o próprio investimento da Crypton Future Media na personagem pode ter movido a comunidade a adotá-la como a primeira grande idol virtual (e talvez a maior até hoje), contratando compositores talentosos para demonstrar o potencial do software. E obviamente, como vocaloid permitia que qualquer um criasse suas próprias músicas, é bem possível que a própria comunidade tenha cativado a si mesma através das suas próprias criações. Sem falar que o próprio interesse prévio pelo programa do vocaloid, e por se tratar de uma versão nova desse software, tenha feito a Hatsune Miku chama mais atenção quando foi lançada do que Meiko e Kaito.
Mas Miku sozinha não é responsável pelo sucesso de vocaloid. Ainda na segunda versão do software, Crypton Future Media lançou Vocaloids como Rin e Len (Em 2008, ambos usando a voz da dubladora Asami Shimoda, que já era conhecida pro dar voz às gêmeas Ami e Mami Futami de IdolM@ster) e Megurine Luka (com a voz de Yuu Asakawa, dubladora de ninguém menos que Motoko Aoyama de Love Hina). E é nessa época, dos anos 2008 até 2011, que outras empresas começaram a distribuir os próprios vocaloids, em particular a Internet Co., Ltd., que lançou vocaloids como Kamui Gakupo (com a voz de Gackt Camui, ex-vocalista da banda Malice Mizer), Megpoid (que mais tarde passou a ser conhecida como apenas Gumi, e é baseada na voz da dubladora e cantora Megumi Nakajima) e Lily (voz de Yuuri Masuda ex-cantora do grupo M.o.v.e, conhecida por cantar algumas das músicas de Eurobeat de Initial D). Já as publicações da SF-A2 Miki (voz de Miki Furukawa, atualmente na banda Lama) e da Kaai Yuki (primeiro vocaloid com voz infantil, e cujo provedor de voz nunca foi divulgado) ficaram nas mãos da AH-Software, que mais tarde (21 de Outubro de 2011), na terceira versão do programa, ficou responsável pela SeeU (voz provida por Dahee Kim, da banda GLAM), a primeira vocaloid capaz de cantar em coreano (mas também podia cantar em japonês).
Em particular, Luka foi tão importante para a popularização de Vocaloid como a própria Miku. Uma vez que ela foi o primeiro banco de voz bilíngue, permitindo a criação de músicas tanto em japonês como em inglês em um só pacote, sendo que músicas em japonês com frases em inglês eram bastante populares na época, principalmente em músicas de anime. Lembro que um pouco depois de seu lançamento era mais comum encontrar músicas novas da Luka do que da Miku, e não tenho dúvidas que ela tenha sido a que chegou mais perto de desbancar a Hatsune Miku como a Vocaloid mais popular, ainda que a longo prazo não tenha conseguido.
Apesar de tudo, a popularidade dos Vocaloids, e principalmente da Hatsune Miku, não ficou restrita apenas às músicas produzidas pelos compositores contratados e pela própria comunidade de usuários do sintetizador de voz. Outro programa contribuiu, e bastante, para que a Hatsune Miku se tornasse esse grande sucesso. O software de licença gratuita programado por Yu Higuchi (HiguchiM), MikuMikuDance (ou MMD), permitia que usuários criassem, de maneira relativamente simples, suas próprias animações e coreografias de dança em ambiente digital, utilizando um modelo 3d da Hatsune Miku.
MMD sem dúvidas abriu uma oportunidade imensa para que a comunidade criasse diversas formas de conteúdos, e dificilmente a Hatsune Miku seria tão popular sem ele. Não apenas o programa permitia que os usuários criassem clipes animados para as músicas criadas com o vocaloid, como, conforme HiguchiM atualizava o programa, toda a forma de conteúdo de vídeo se tornou possível quando a aplicação passou a aceitar que usuários utilizassem outros modelos além do da Hatsune Miku, além de já contar com modelos de outros vocaloids inseridos no programa. Com o MMD passou a ser possível parodiar cenas de filme, fazer shitpost, colocar todos os personagens de vocaloid (e de outras obras e franquias) para dançar, recriar memes e vídeos virais da internet, além de compartilhar as animações e sequências de câmera e cortes com seus amigos ou com toda a internet.
Havia pessoas dedicadas a criar e adaptar modelos 3d de tudo quanto é tipo de personagem, não importava se era de filme, jogo, anime ou mangá, exclusivamente para utilizar-los no MMD. Algo que continua sendo verdade até hoje, basta olhar para a grande quantidade, e qualidade, de vídeos no MMD que são continuamente publicados no YouTube utilizando os personagens de Genshin Impact, jogo free-to-play da empresa Chinesa MiHoYo, que disponibiliza gratuitamente os modelos dos personagens já prontos para serem usados no programa.
O impacto de Vocaloid, da Hatsune Miku e do MMD na comunidade otaku e sua contribuição para a aparição das Vtubers pode não ser clara em primeira instância, mas basta uma reflexão um pouco mais calma para observar que ambos os eventos estão muito bem relacionados.
Primeiro, não há como negar que a Hatsune Miku mudou completamente a forma como otakus e fãs de anime consomem e compartilham conteúdo na internet. O que antes era limitado majoritariamente ao compartilhamento de fanart e fanfic (e doujins ( ͡° ͜ʖ ͡°)), agora expande-se para criação de música, dança e animações em 3d. Ou seja, Vocaloid acabou incentivando que os fãs desenvolvem, além da escrita e do desenho, habilidades com música, modelagem 3d e animação em ambiente 3d.
O que não quer dizer que não existiam fãs de animação que não tivessem essas habilidades antes do sucesso de vocaloid, nem que depois dele outros tenham se interessado por essas proficiências por outros meios, mas a questão é que a inspiração estava ali e ela deve ter influenciado muita gente. E com o aumento de interesse nessas áreas cresce também o número de pessoas dispostas a ajudar os outros a aprenderem essas habilidades. Se hoje é relativamente fácil encontrar tutoriais de como usar o Blender, como importar um personagem de um programa para o outro, como mapear o esqueleto de um modelo 3d etc., é porque em algum momento houve uma grande procura por esse tipo de informação. Sem falar que, sem dúvidas, essas são algumas dos talentos necessários para tirar o conceito de uma Vtuber e colocá-lo em prática.
Algo que se relaciona intimamente ao segundo ponto, que é a importação da estética anime a mundos virtuais em três dimensões. Hatsune Miku certamente fez parte desse processo, não apenas por conta do MMD e em como ele facilitou na banalização dessa estética, mas pelos próprios esforços oficiais da Crypton Future Media em promover seus vocaloids, e em particular na sua investidura na Hatsune Miku como uma verdadeira idol virtual, que vai desde a criação de clipes de música com o uso de animação em 3d, e de jogos com esses personagens (principalmente os jogos da série Hatsune Miku: Project DIVA, criado em parceria com a SEGA), até o uso de hologramas na realização do famigerado show primeiro show da Hatsune Miku, que aconteceu na Saitama Super Arena, em 22 de agosto de 2009, e dos outros que vieram em seguida. E além disso, como a própria estética dos modelos dos Vocaloids usados no MMD influenciou na estética de diversos jogos do início da década passada, principalmente os criados de forma independente.
O terceiro ponto, e provavelmente o mais fácil de observar deles, é que o design da Hatsune Miku foi uma clara inspiração para o visual da Kizuna Ai e de outras Vtubers que vieram após dela.
Mas, mais importante do que isso, é que não há como negar que a Hatsune Miku nos trouxe o conceito de idol virtual, uma ideia fundamental para o nascimento das Vtubers. Já que, como consequência direta dessa ideia, surgiram diversas tecnologias objetivando trazer para mais perto de nós esses personagens, além de buscar outras formas de interação com eles (Uma busca que existe faz tempo, e que já mencionei no texto Colocando os Otakus fedidos em forma, em que abordo os animes de Zumba). Principalmente quando se trada de personagens que nos são queridos, como nossas waifus e nossos husbandos.
Claro que nem todas essas novas tecnologias e novas formas de interação com personagens emplacam, como a realidade aumentada, e a realidade virtual, que há anos tentam engajar a massa dos consumidores, sem sucesso, gerando no máximo um engajamento temporário de alguns entusiastas de tecnologia. Por outro lado, há algumas tecnologias que, apesar de levarem algum tempo para serem assimiladas pela industria, seus produtos acabam sendo bem recebidos pelo mercado.
Uma dessas tecnologias, que é muito utilizada hoje em dia pelas Vtuber, é o Live2D. Uma programa de computação gráfica que permite ao usuário animar uma ilustração sem a necessidade de criar um modelo 3d ou de desenhar manualmente cada frame de animação, o que permite a geração em tempo real de animações bem detalhas. Essa tecnologia é utilizada para jogos que utilizam a estética anime e que possuem seções de diálogo alá Visual Novel, como o jogos para Smartphone BanG Dream! Girls Band Party! (de 2017), Azur Lane (2017) e Girls’ Frontline (2016), ou mesmo Fire Emblem Fates, de 3DS (que permitia o jogador tocar um dos seus personagens utilizando a tela de baixo do portátil, mas essa feature não foi inteiramente implementada no ocidente, restando apenas alguns afetivos com os personagens do jogo).
Apesar de não ser o primeiro jogo a utilizar essa tecnologia (supostamente esse seria um jogo de PSP de 2012, baseado na série de Light Novels Boku wa Tomodachi ga Sukunai), o primeiro produto a chamar a atenção dessa técnica de animação foi a Visual Novel Nekopara, que foi lançada no Steam no fim de 2014. Coincidentemente, ou não, no decorrer do ano seguinte FaceRig também entrou no catálogo da loja virtual, e permitia o usuário animar uma coletânea de avatares virtuais a partir de seus movimentos faciais (e também pelo som captado pelo microfone do computador). Mais para o final do ano, a empresa Holotech Studios, responsável pela distribuição do software, também acrescentou um modulo, vendido separadamente, que permite o usuário importar avatares criados no Live2D Cubism para utilizá-los no FaceRig.
Apesar dessa ser a combinação de programas mais comum entre os Vtubers, há também outras opções, muitas delas surgiram mais tarde, e possuem um foco maior em avatares 3d. Para mais detalhes sobre o assunto, a Hyprsense, uma empresa canadense focada em tecnologia de captura de movimento facial, fez uma excelente postagem no ano passado(2019, em inglês), citando todos os passos necessários, e possíveis programas, para criar e utilizar o seu próprio avatar virtual.
Dessa forma, com as tecnologias de captura de movimento facial mais acessíveis, e com diversas possibilidades para criar personagens com a estética anime animáveis a partir dessas tecnologias, naturalmente algumas pessoas passaram a utilizar essas ferramentas na produção de conteúdo em vídeo. Mas foi apenas em 2016, com o rápido crescimento da Kizuna AI, que o interesse sobre essa forma de produção de conteúdo verdadeiramente pegou.
Já nesse momento surgiam diversos canais de YouTubers Virtuais, que produziam todos os conteúdos que os outros YouTubers normalmente faziam, desde vlogs, gameplays e até mesmo vídeos discutindo assuntos diversos, e não muito tempo depois disso se passou a usar o termo Vtuber para se referir a esses criadores de conteúdo. A grande maioria eram independentes, mas é claro, algumas empresas também seguiram a febre da Kizuna AI e tentaram emplacar suas próprias Vtubers, como o caso da Super Sonico, personagem mascote da empresa Nitroplus, que recebeu uma série de vlogs em seu canal no YouTube (encerrada em 2020), ou para fins promocionais, como o caso da KADOKAWA que utilizou esse estilo de víðeo para promover o mangá Uzaki-chan wa Asobitai (como já mencionei no texto Qual é o Problema da Uzaki-chan), ambos os casos em 2018.
Mas o destaque vai para a agencia de talentos Hololive que (junto de outras afiliações de Vtubers, em particular a Nijisanji) praticamente moldou nosso entendimento atual do que é um Vtuber. Propriedade da empresa Cover Corp, fundada pelo Motoaki Tanigo (mais conseguido como Yagoo, dado a um erro de soletração da Vtuber Oozora Subaru), Hololive fora concebido inicialmente como um app para smartphone, que permitia que os usuários visualizassem, em tempo real, a transmissão das lives da, até então, única Vtuber da empresa, Tokino Sora, através de realidade aumentada, o que explica o nome, uma vez que Holo vem de Holograma, que faz referencia a projeção de algo virtual para o mundo real, ainda que apenas dentro da tela do celular, no caso do app.
Posteriormente, porém, provavelmente pela baixa adesão dessa funcionalidade (por ser pouco prática, e não acrescentar muito a experiência da live), o aplicativo foi atualizado e a realidade aumentada removida. Em seu lugar, o app passou então a servir como programa de captura de movimento facial, utilizada para animar uma seleção de personagens, em sua grande maioria as Vtubers da empresa. Curioso é que, através dessa repaginada do aplicativo, a empresa o utilizou para realizar audições para selecionar atrizes para interpretarem algumas de suas Vtubers que vieram posteriormente, em particular Aki Rosenthal, Hitomi Chris(não mais ativa), Shirakami Fubuki, Akai Haato, e Natsuiro Matsuri, consideradas a primeira geração de Vtubers de Hololive, junto com Yozora Mel.
Segundo o próprio Yagoo, sua intenção inicial era criar um grupo de idols virtuais, abertamente inspirado por Kizuna Ai e Hatsune Miku, semelhantemente aos grupos de idols reais, tendo AKB48 como seu maior modelo. O que resultou na incorporação de alguns elementos da cultura idol japonesa no meio das Vtubers. Como; a pratica de tornar a primeira aparição de uma Vtuber um verdadeiro evento especial, em que ela se apresenta de forma ostensiva ao público; o modo como essas Vtubers são agrupadas em gerações, ou unidades; das veteranas serem chamadas de “senpai” pelas Vtubers mais novas; e o fato de que quando uma Vtuber se “aposenta” ou se retira do grupo, é dito que ela graduou daquele grupo.
Porém, é nesse momento que nos resta perguntar qual foi o motivo para apenas agora, no decorrer de 2020, as Vtubers tenham se popularizado fora do Japão. Afinal afinal de contas, o conceito não nos era estranho, e sabíamos muito que elas existiam e o que faziam praticamente desde o início de seu surgimento, então… o que aconteceu?
Bom, responder essa pergunta é o mesmo que procurar a diferença entre o sucesso de Vocaloid e de Hatsune Miku com o das Vtubers. Afinal, como disse no começo do tempo, o ocidente acompanhou, ainda que em proporções menores, o sucesso da primeira idol virtual praticamente simultaneamente ao seu crescimento no Japão. Então, o que tinha de diferente em Vocaloid que faltava nas Vtubers?
E a resposta está na ponta da língua, ou melhor dizendo, é a língua em si. Isso mesmo, a grande diferença entre o sucesso de Vocaloid com o das Vtubers é o quanto a barreira da linguagem dificultou na absorção do fenômeno pelo ocidente.
Afinal de contas, para apreciar uma música não é preciso compreender e dominar a língua em que ela é cantada. Claro, entender a língua permite que o ouvinte se aprofunde na mensagem passada pelo artista, e se sensibilize pelo que é dito, mas não necessariamente é o principal elemento que faz alguém gostar de uma música.
Ritmo, sonoridade, estética musical e melodia são os elementos principais de uma música, que a definem e a diferem de qualquer outra mídia, e o melhor de tudo, são universais. O mesmo vale para dança, coreografia e linguagem corporal. E prova disso é o grande sucesso da música de PSY, Gangnam Style, que cativou o mundo em 2012 com seu ritmo, coreografia e clipe inegavelmente cômicos, muito antes das pessoas se quer imaginassem do que se tratava a letra.
Por outro lado, como o conteúdo produzido pelas Vtubers era majoritariamente composto por lives, vlogs, e outros formatos que envolviam de alguma forma uma conversa ou diálogo, sua penetração no ocidente não acontecia de forma tão natural. Afinal de contas, para apreciar a fala de alguém é necessário entender o que essa pessoa está dizendo em primeiro lugar.
E o como a grande parte das Vtubers de sucesso falavam e interagiam com internautas quase que exclusivamente em Japonês, e muito pouco do conteúdo roteirizado (ou seja, o não transmitido ao vivo) era legendado em inglês, e muitas vezes a legenda demorava para aparecer, era inconstante, havia vídeos que estavam legendados no canal de certas Vtubers e outros não. De forma que o público ocidental tinha poucas opções do que acompanhar quando a matéria é Vtubers.
E como já mencionei nesse texto, variedade foi um fator bastante importante para o sucesso de Vocaloid. Afinal, ainda que alguém não se interessasse muito pela Hatsune Miku em si, ainda existiam um punhado de personagens que poderiam interessa essa pessoa. As músicas produzidas também cobriam um leque muito grande de gêneros, tínhamos desde músicas voltadas para para o pop típico da cultura idol de hoje, até o rock, metal, industrial, tecno… invocando uma infinitude de sentimentos, como raiva, ódio, tristeza, alegria, risos e solidão.
A própria apresentação da Miku era algo que variava bastante, os artistas responsáveis pelas suas músicas e ilustrações a colocavam em tudo quanto é tipo de roupa, por vezes até modificavam algumas características de seu design. Mudando a cor de seus olhos e de seus cabelos, sua altura, idade aparente e demais características corpóreas. Por vezes as modificações eram tantas que dali nasciam personagens novos. O caso mais popular é provavelmente Black Rock Shooter, um clipe (2009) da banda japonesa Supercell que apresentava Miku como uma heroína solitária de cabelos negros e assimétricos, olhos azuis, pele pálida e equipada com um canhão em seu braço, mas que posteriormente recebeu uma animação belíssima em OVA (2010), um jogo para PSP em 2011, e por fim uma animação para televisão em 2012.
De qualquer forma, a barreira da língua não foi o bastante para impedir que um grupo menor de pessoas, em sua maioria com algum entendimento do Japonês, acompanhasse as lives das Vtubers japonesas e copilasse, editasse, e selecionasse momentos divertidos e engraçados dessas transmissões (em forma de clipes curtos de vídeo). Por vezes legendando e contextualizando lives inteiras para o demais público (obviamente depois que essas lives aconteciam).
Foi apenas uma questão de tempo para que alguns desses clipes caíssem na graça do público geral (como o da Korone Inugami tendo o coração partido no jogo plug and play, ou quando Sakura Miko reforçou a importância do distanciamento social atirando nos NPCs de GTA5, no começo da pandemia do COVID-19), fazendo com que cada vez mais as pessoas fossem atrás das lives dessas personagens, e tentassem interagir de forma mais ativa com elas, criando, então, uma comunidade ao redor desse conteúdo legendado pelos fãs.
Um processo bastante parecido (e ainda mais rápido) com o que aconteceu com o próprio Anime no decorrer das décadas de 2000 e 2010, em que a grande maioria dos animes eram legendados e distribuídos no ocidente exclusivamente pelos próprios fãs. E, assim como no casos dos Animes, em que aos poucos as empresas foram abraçando essas comunidades, enxergando nelas um mercado bastante promissor, e passaram a legendar e distribuir animes através de serviços de Streaming, as próprias Vtubers do Hololive passaram a perceber esses telespectadores estrangeiros e muitas delas passaram a utilizar o inglês com maior frequência para interagir com essas pessoas, inclusive fazendo streams apenas em inglês (ou ao menos tentando apenas falar em inglês), além da própria empresa promover Vtubers com maior proficiência em inglês, como é o caso de Kiryu Coco.
E ainda, outros produtores de conteúdo em língua inglesa também passaram a se interessar pela técnica devido a crescente popularidade do tema dentre a comunidade em torno dos animes, anunciando suas próprias Vtubers, como a YouTuber Nyanners, que em julho desse ano (2020) passou utilizar um avatar para produzir conteúdos em live e para o seu canal, mas que desde 2011 já produzia vídeos para a plataforma, envolvendo alguns dos temas questionáveis que rodeiam anime e mangá.
Mas outro evento que chamou a atenção do público para as Vtubers foi o caso da Projekt Melody, que se destacou por ser a primeira a personagem virtual a fazer transmissões ao vivo no site Chaturbate, uma plataforma online voltada para o streaming das chamadas camgirls, mulheres que se expõem de sexualmente a um publico em troca de doações ou pagamento prévio.
Supostamente uma IA criada para detectar malwares em e-mails, Melody teria se corrompido ao entrar em contato com conteúdo pornográfico dentro desse ambiente virtual e teria adquirido uma obsessão pela sexualidade humana em 2019, quando passou a ser ativa no twitter. Posteriormente teria começado sua carreira no Chaturbate como consequência de seu desejo por um corpo físico, o que lhe rendeu a colocação de canal com maior número de visualizações do site. O que acabou causando uma forte repercussão negativa, pois havia a consideração que ela não deveria dividir o mesmo espaço que mulheres reais porque ela não se expunha da mesma forma, e nem se colocava tanto numa posição de vulnerabilidade quanto alguém que não se escondia por trás de um avatar virtual.
Criado pelo animador americano DigitrevX, e segundo ele, o design dos modelos de Melody possuem forte influência do anime futurista de temática cyberpunk Ghost in the Shell, além da série de jogos Hyperdimension Neptunia, mas mais uma vez não se pode negar que há também a influência da Hatsune Miku em seu design, e principalmente nos modelos dela utilizados no MMD.
Atualmente, Melody, junto de Nyanners, Ironmouse e outras Vtubers ocidentais, incluindo novatas como a lich Apricot Froot, faz parte do recém formado VShojo, grupo que vem acompanhando essa contemporânea tendência de lançamento de grupos de Vtubers ocidentais.
Mas o que realmente firmou o sucesso das Vtubers no ocidente foi o lançamento do grupo Hololive EN, ou Holomyth, que é a atual cara das Vtubers por esse canto do globo, e os verdadeiros talentos de: Ninomae Ina’nis, em sua habilidade para desenhar; Mori Calliope, que rapidamente ficou popular pelos seus raps; Takanashi Kiara, que surpreendeu pela sua fluência em Inglês, Japonês e Alemão (língua nativa dela), e aparentemente teve o seu canal temporariamente suspenso pelo YouTube no dia da publicação desse texto, dia 9 de dezembro, provavelmente por falsas denúncias de infringimento de copyright, mas não demorou muito para que a fênix renascesse; Watson Amelia, que cativou a comunidade pelo for entendimento de cultura de internet e as intrigantes histórias por trás seus ferimentos corporais; e, Gawr Gura, que foi a Vtuber que mais cresceu nos últimos meses, chegando a se tornar a segunda Vtuber com mais inscritos em seu canal no YouTube em 8 de novembro (2020), perdendo apenas para a própria Kizuna AI.
O Brasil também não ficou de fora, muito menos parado no tempo. Não apenas brasileiros passaram a frequentar lives das mais diversas Vtubers mundo a fora, fazendo o já clássico pedido de live “manda um salve pra firma”, e interagindo com Vtubers gringas tentando falar português, como não demorou muito para que surgissem nossas próprias Vtubers brasileiras.
Em sua maioria criadores de conteúdo independente, que tiveram que criar seus avatares por conta próprias (ou na melhor das hipóteses comissionando-os de terceiros), a primeira Vtuber brasileira chama-se Vibe infelizmente parece ter saído de atividade, com o desativamento de seu canal no YouTube, restando apenas uma conta inativa no instagram.
Porém, dentre as que hoje continuam em atividade, essa é provavelmente Yumi Ai (cujo nome não esconde a inspiração na Kizuna) que tem seu canal voltado para gameplays, desde o final de 2019. Mas a mais popular entre as brasileira é a BatataComPepino que no momento de escrita desse texto possui mais de 144 mil seguidores em seu canal da Twich, e que já era bastante ativa na rede antes de deputar como Vtuber.
Hoje é muito difícil sequer contar quantas Vtubers há no Brasil (e menos ainda mo mundo), dado ao acesso facilitado às tecnologias de captura de movimento fácil e de streaming via rede. Mas, para fechar esse texto, vale apena citar algumas delas como: Moony Yuiky, que utiliza um avatar da personagem Hk416 (de Girls Frontline) em suas transmissões; Mashiron, que tem espalhado o amor a coelhinhas através de suas lives e principalmente no twitter; Winy, a nekogirl que tem um cobertozinho!; e Ume Maia, a lobo-guará, parente do Tim Maia(?), eterna defensora dos fantásticos homem-peito.