Suas Idols estão Mortas
Quando Zombieland Saga foi anunciado para a última temporada de 2018, muito pouco sabia-se do título além de, bom, o título, o visual dos personagens e que a obra envolveria zumbis de uma forma ou de outra.
Afinal de contas, trata-se de uma série original resultado de uma parceria entre a produtora de jogos Cygames (conhecida principalmente pelas franquias Granblue Fantasy e Shadowverse) e as produtoras Avex Pictures (que produziu animes como Osomatsu-san e Schwarzesmarken) e Dugout (produtora de Banana Fish e Blade Runner: Black Out 2022).
E quando finalmente pudemos ver sua estreia o resultador não poderia ser diferente: Fomos fortemente impactados (hehe) logo nos primeiros segundos de animação pelo fato dele se tratar de um anime de idols zumbis. E essa mistura cômica entre mortos-vivos e garotinhas fofinhas fazendo coisas fofinhas acabou sendo muito bem recebido não apenas entre os fãs e consumidores dessa mídia, como pela própria crítica. O que acabou resultando no premio de melhor animação para televisão pelo Tokyo Anime Awards no início de 2019.
Dado tamanho sucesso, portanto, não é surpresa nenhuma que, apesar da longa demora, temos finalmente anunciado que a segunda temporada de Zombieland Saga já está em produção, ainda que sem nenhuma data marcada até a publicação desse texto.
Sendo assim, nada mais justo do que falar dessa mistura de sucesso que resultou no meu anime favorito de 2018. (E se tem um texto pra avisar que tem spoilers esse texto é esse, então recomento assistirem a primeira temporada antes de prosseguir)
Contudo, essa não é a primeira vez que falo de Zombieland Saga aqui no Medium. Apesar de não ser o assunto do texto em si, foi justamente o episódio 8 do anime, e as discussões ao redor dele, que me levaram a escrever sobre o termo trap e em quais circunstâncias o seu uso pode ser considerado ofensivo.
Afinal, é nesse mesmo episódio que descobrimos que a personagem Lily Hoshikawa é uma garota transexual, e esse fato é tratado com bastante naturalidade pela narrativa. É claro, todas as personagens do grupo são surpreendidas por essa descoberta, já que, Lily não demonstra nenhum traço de seu gênero biológico. Mas não é nada além disso.
Em momento nenhum a narrativa a trata de maneira diferente por conta disso, nem mesmo considera a sua dissonância de gênero como um problema em si. Na verdade, essa característica é algo tão pequeno e tão pouco relevante para a trama do próprio episódio em que ela é apresentada que é até mesmo natural que esse detalhe tenha passado despercebido para algumas pessoas.
Afinal de contas, o que está em foco nesse episódio é o reencontro da Lily com o seu pai, e as circunstâncias nas quais ela se separou dele: Com sua morte causada pelo forte (e bastante cômico) choque ao perceber que não manteria sua aparência infantil para sempre e, principalmente, por tê-lo chamado de “idiota” e dito que o odiava logo antes de morrer. Algo que obviamente não reflete os seus reais sentimentos por ele.
Claro, nesse episódio há algumas “piadas fálicas” em virtude do personagem responsável pela criação daquele grupo de zumbis, Kotaro Tatsumi, e a Saki ri indiscriminadamente com o fato do nome antigo da Lily não combinar nem um pouco com ela. Mas isto acaba sendo mais uma consequência da natureza cômica da série, e da própria personalidade desses personagens, do que um desrespeito com a condição da personagem (ao menos no meu ver como Homem cis).
Inclusive, está é uma informação que está presente apenas nesse episódio, de forma que, se por qualquer motivo, alguém pular ou não prestar atenção nesse detalhe nunca irá percebê-la dessa forma. O que é excelente, pois, a partir do momento que essa característica não trás nenhum impacto para trama, e não é algo visto como um problema para a personagem, não há necessidade de ficar lembrando o telespectador disso o tempo todo.
Por outro lado, há um sub-texto presente em praticamente toda a narrativa da obra. Que é a crítica que a animação faz para a industria de idols dentro e fora do Japão.
Não importa para onde você olhe, sempre há um simbolo, uma metáfora, que indique essa crítica. Inclusive próprio fato delas serem zumbis. Humanas sem vida própria, obrigadas a esconderem o que realmente são para o público com quilos de maquiagem hollywoodiana, idols perfeitas, que não precisam comer ou dormir, não se cansam ou envelhecem, podem passar todo o seu tempo, e toda a sua não vida, treinando e aperfeiçoando o seu canto e a sua dança.
Sem mencionar que a sala de reunião entre a Franchouchou e seu empresário aloprado é uma verdadeira cela de prisão, algo que não poderia ser mais adequado tanto ao tema de zumbis como a própria crítica que a narrativa constrói em suas entrelinhas.
Além disso, nenhuma delas pode simplesmente abandonar aquela casa e viver uma vida normal, pois poderiam muito bem serem remortas pela polícia local se tentassem. O que faz alusão aos contratos absurdos, e praticamente vitalícios, pelos quais algumas idols estão presas. Em outras palavras, elas não podem ter outra vida senão aquela.
Mas Zombieland Saga não apenas critica essa cultura de maneira cega. Ela também põem para debate o fato da divisa entre idols e público ter se tornado mais estreita, mostrando que antigamente idol eram vistos como seres intocados, e que havia uma separação bem clara entre o palco e a plateia, através da fala da Junko, mas que hoje em dia os fãs praticamente acompanham cada passo de suas admiradas, segundo a fala da Ai.
E, obviamente, o anime levanta sutilmente os prós e os contra dessa mudança, sem concluir se ela tenha sido para melhor ou para pior, porque bem provavelmente não há como responder a essa pergunta sem ser tendencioso para um dos lados. Sim, os tempos mudaram, a vida privada das idols ficou mais pública, mas com os fãs estando mais próximos das idols tem suas vantagens. E por isso Kotaro permite que Junko não participe das confraternizações com o público se não quiser.
E é claro, o anime não apenas apresenta as questões ruins que envolvem a industria de idols, e também mostra que, apesar dos pontos negativos e dos muitos abusos presentes nessa industria, ela trás sim seus impactos positivos para as pessoas, em particular naquilo que o anime coloca como sendo o verdadeiro trabalho se uma idol: Inspirar as pessoas, ajudá-las a sonhar, e obviamente trazer mais alegria para a vida dos outros.
O mais importante disso tudo é que, ainda que essa seja uma crítica muito bem explorada pelo anime e bastante importante de ser feita, ela é apenas isso, um sub-texto nas entrelinhas da série. Não é nem um pouco necessário entendê-lo ou percebê-lo para de fato aproveitar a obra. Porque bem antes dela ser uma crítica a industria de idols ela é uma das comédias mais divertidas que tivemos nos últimos anos e (ironias a parte) um excelente anime de idol.
E se há um aspecto só que é essencial para se criar um bom anime de idol, esse é a diversidade e qualidade de seus personagens. Afinal, se há algo extremamente importante em um anime de idol é, como fácil de imaginar, as próprias idols.
E nesse aspecto, Zombieland Saga acerta em cheio. Não apenas suas personagens são diversificadas visualmente como em personalidade, modo de falar (cada uma tem um “sotaque” bastante diferente das outras), região de origem, época de origem, e por ai vai.
O que é evidenciado pelo próprio design das personagens. Basta olhar para as roupas que elas utilizam no decorrer do anime. Cada uma delas (com exceção da Tae) utiliza um uniforme escolar diferente, que indicam traços de suas personalidades e origens tanto históricas como regionais.
Por exemplo, o uniforme da Ai tem um design bastante moderno, e facilmente encontrado na região central do Japão. O que corresponde com o fato dela, muito provavelmente, ser uma idol de Tokyo e uma das que vêm de uma época mais recente em comparação as outras.
O seu uniforme também indica traços de sua personalidade. Por exemplo, o fato de sua saia ser bastante curta, mostrando suas coxas, e de usar o paletó do uniforme aberto indicam que ela possui uma personalidade mais extrovertida, aberta, que ela fala o que pensa, e não guarda os seus sentimentos para si mesma. Ao mesmo tempo, ela não utiliza nenhum tipo de acessório, nem fez nenhuma alteração em seu uniforme, o que condiz com o lado mais sério e determinado de sua personalidade.
Em contraste, o uniforme de Junko é mais antiguado, o que faz sentido, pois ela é uma das idols mais velhas do grupo. E o modo como sua saia oculta as coxas também é um reflexo de sua personalidade mais reservada e tímida em comparação com as outras garotas.
E esse paralelo não existe aqui atoa. Afinal, como já mencionado antes, Ai e Junko se apoiam dois ideais diferentes para o mesmo conceito. Enquanto Junko representa o ideal da idol inalcançável, pura, sem nenhum defeito evidente, um ser que está acima de todos como um exemplo de perfeição, Ai se apoia em uma ideia mais real de idol, além vinda do povo, um humano como qualquer outro, que possui os seus defeitos, é capaz de errar, mas que supera suas fraquezas e utiliza os seus fracassos para se tornar mais forte e ir além.
Em muitos aspectos ambas são opostas, enquanto em outros as duas têm muito em comum.
Por outro lado, Saki também utiliza uma saia mais longa, mas por um motivo bem diferente do de Junko. Esse elemento do seu visual, aliado com a jaqueta de basebol e suas mechas de cabelo coloridas, vão de encontro ao próprio passado dela como líder de uma gangue de motoqueiras, assim como refletem a atitude mais rebelde e ameaçadora da personagem.
Além disso, o uniforme em si também passa a mensagem de se tratar de uma colegial dos anos 90, ou mesmo os anos 80, ainda que provavelmente seja pelos mesmos elementos que a identificam como uma yanki, já que essa é uma subcultura que se originou nessa época.
Sua personalidade, e origem como motoqueira é, afinal de contas, uma sátira a tomboy que todo grupo de idol que se preze tem que ter, como a Makoto de idolM@ster, ou mesmo a Rin de Love Live. Saki não é, naturalmente, um exemplo de feminilidade, boas maneiras, ou de bom comportamento. Sua fala é rude, suas atitude são extremas, e o próprio modo como Saki morreu são reflexos do exagero desse trope.
Em contrapartida, as roupas utilizadas pela Yuugiri remetem ao uniforme utilizados pelo estudantes da era meiji, o que obviamente não é mera coincidência. Além disso, o modo como a saia praticamente separa o busto do restante do corpo apenas realçam seus seios fartos e o quadril, o que somado ao fato de que a zumbi volta e meia deixa um dos seus ombros expostos quando nessa roupa, dialoga com vários traços de sua personalidade, em particular com o fato dela ser uma cortesã, ou, mais especificamente, por suas habilidades artísticas estarem intimamente ligadas com a sua sexualidade.
Enquanto a personalidade de Saki é o resultado de um belo exagero do arquétipo da tomboy, a de Yuugiri brinca com a concepção da idol mais madura, e que serve como guia e conselheira para as outras garotas do grupo. E essa brincadeira se dá presente tanto no seu passado como cortesã que, apesar de não necessariamente se relacionar carnalmente com seus clientes, está obviamente ligado a uma maturidade sexual, como nos excelentes e literais tapas que ela distribui em diversos momentos da série, que são seguidos por conselhos já concluídos pelos personagens esbofeteados.
O uniforme de Lily por outro lado indica que ela era uma estudante numa época recente, e o modo como sua saia possui aproximadamente o mesmo tamanho que o paletó de seu uniforme e o fato de suas roupas não contornam o corpo apenas reforçam sua aparência infantil. Além disso, a baixa quantidade de detalhes e elementos do uniforme acabam levando os olhares para exagerado cabelo da personagem e seus acessórios chamativos, o que ajuda bastante a vender a imagem de garotinha fofa e energética do grupo.
Afinal de contas, a personalidade de Lily por inteiro gira em torno dela ser a loli do grupo, o personagem mascote, uma eterna criança. E ela ter se tornado uma zumbi acaba, ironicamente, permitindo que ela alcançasse esse sonho, porque, até onde a gente sabe, zumbis não envelhecem. Por isso não é nenhuma surpresa que ela acaba sendo uma das que, desde o começo, aceite com facilidade a sua condição de zumbi.
Já o uniforme que a Sakura usa compartilha elementos com praticamente todas outras personagens. Apesar de poucas similaridades, o seu uniforme pode ser comparado com o de Saki, em particular os botões da saia e forma como ela demarca a altura das costelas como se estivesse amarrada ao redor da barriga. E essa conexão faz sentido pois ambas são provenientes de Saga, algo confirmado pelo sotaque de Sakura ser proveniente de Karatsu(cidade em que se passa a série).
Por outro lado, o modo como o uniforme de Sakura evidencia os seus seios é bastante similar ao de Yuugiri (apesar das diferenças claras no design) ao mesmo tempo em que as proporções do uniforme são mais similares ao de Lily. O que é indicativo do fato de que Sakura não ser tão madura quanto Yuugiri, nem tão infantil quanto Lily, mas uma mistura de ambas as coisas, da fofura e do apelo sexual., um equilíbrio entre a juventude e a maturidade.
O que também condiz com a sua personagem, já que a Sakura é a engrenagem principal que faz a narrativa girar. E não apenas pelo fato dela ser a primeira zumbi a despertar e adquirir autoconsciência, ou porque ele age como mediadora em diversos momentos da série, mas porque ela é subversão do que se espera de protagonista em um anime de idol.
Em certos aspectos, Sakura tem tudo que uma protagonista em anime de idol deve ter. Ela é energética, motivada, quer dar o melhor de si, motiva as outras garotas e ajuda elas sempre que um novo problema surge. Sem mencionar que a ligação dela com o gerente do grupo é inegável.
Mas, em outros aspectos, Sakura é o exato oposto daquilo que se espera de um personagem desse tipo. E isso fica evidente em dois momentos: No primeiro episódio, em que a personagem age com justificado pessimismo contra as ações do gerente, e serve como uma voz da razão no daquela situação absurda.
E o segundo momento é quando Sakura recupera as suas memórias de antes de morrer, e não apenas é revelada a sua natureza depressiva, mas o seu passado repleto de fracassos e infortúnios. Com um azar maior que o outro, impedindo que ela colhesse os frutos de seus esforços. O exato oposto do que normalmente acontece com a maioria das protagonistas de idol, que, apesar de nem sempre conquistarem o que almejam, têm a sorte ao seu lado.
Por fim, as roupas de Tae não representam nem um pouco um uniforme estudantil. Aliás, é bem difícil dizer exatamente o que o seu vestido preto realmente informa a respeito do passado da personagem quando ainda em vida, porque até o presente momento não sabemos absolutamente nada sobre a personagem antes dela se tornar um zumbi.
O que não significa que o vestido de aparência desgastada, desleixada e monocromático não comunique nada para o telespectador. Pelo contrário. Tae é a única das idols que não desperta após o primeiro show do grupo, e permanece como um zumbi sem autoconsciência, agindo de acordo com seus instintos mais primitivos. E são essas características que são expressas por suas roupas de maneira simples e direta.
O fato dela ser um zumbi, e agir de maneira imprevisível cada vez que ela vira o ponto central de uma cena, ser algo intrínseco de sua personalidade faz com que a Tae acabe roubado o papel de mascote do grupo de Lily. O que contradiz com alguns elementos de seu design, em particular os cabelos longos e negros, que são marca registrada da integrante misteriosa do grupo de idol (ou mahou shoujo), que normalmente é a última a se juntar ao grupo.
E de certa maneira, a Tae não deixa de cumprir esse papel, porque, como já disse, não sabemos de absolutamente nada sobre o seu passado quando ainda viva, e ela nem mesmo teve o devido despertar no decorrer da série. De modo que a sensação é a de que ela não se juntou realmente ao grupo como as outras garotas.
Mas é claro, os personagem, e seus designs, são apenas um dos elementos que fazem Zombieland Saga ser uma obra incrível. A série tem todos os outros aspectos que fazem um bom anime de idol. Desde a comédia, o drama entre as personagens, suas inseguras, o modo como a cada episódio o laço entre as personagens se torna mais forme, como elas melhoram no decorrer a trama, a variedade das músicas apresentadas no anime, como ele flerta constantemente com o gênero de terror, e se utiliza do fato delas serem zumbis para construir o seu humor da forma mais cartunesca possível…
Mesmo os mistérios ao redor da trama a tornam ainda mais interessante e instigante. Como o fato de ainda não sabemos como a Yuugiri de fato morreu, o passado da Tae, ou quem ela é? O que Inui-kun, digo, o Kotaro realmente quer com aquele grupo de zumbis, é mesmo reviver Saga? Qual a ligação dele com a Sakura, eles eram apenas colegas de escola, ou há mais do que isso? Quem é aquele velho do bar, e por que o corpo delas não foi cremado como é a prática padrão no Japão?
Todas essas e muitas perguntas, eu espero, devem ser respondidas na próxima temporada de Zombieland Saga: REVENGE!!