O quê é Arte? e Pra quê defini-la?
Quando comecei a me aventurar na internet, numa época muito antes do Whatsapp e do Facebook, momento em que o Orkut ainda era a maior das novidades, ou até mesmo um pouco antes dele surgir e monopolizar boa parte de nossas atividades online, era comum me deparar com discussões em diversos fóruns de internet sobre a pergunta de se animes eram ou não uma forma de arte.
Por trás daqueles debates, havia a ideia de que, caso animes fossem considerados uma forma de arte, consumir os mais variados títulos dessa mídia teria um valor em si mesmo e os Otakus da época estariam então em uma posição bem parecida com a dos cinéfilos, no sentido de estarem envolvidos em uma atividade intelectual louvável, ou até mesmo nobre. Ou seja, por trás dessas discussões havia uma procura por validação do hobbie de assistir animes.
Essa busca por validação era de certa maneira uma resposta ao preconceito que animes e mangas sofriam naquela época, quando eram vistos pela maioria da sociedade como uma mídia que deveria ser consumida exclusivamente por crianças e abandonada pelo individuo conforme esse fosse amadurecendo. Contudo, mesmo naquela época, animes e mangás já traziam consigo muitos títulos com conteúdos inadequados para o público infantil — principalmente o que tange a violência e conteúdo sexual explícito — de modo que quem consumia de fato a mídia não poderia concordar com tal afirmação (o famoso anime não é só coisa de criança). Sem mencionar que esse preconceito também carregava consigo a ideia de que a literatura infantil é menos arte apenas por destinar-se ao público infantil, como se isso fosse algum tipo de demérito (o que é tema para outro texto).
Por bem ou por mal, essa não é uma questão trabalhada nos dias de hoje, nem é a proposta desse texto reaver qualquer um dos pontos apresentados naquela época. Hoje, Anime é visto como uma forma de arte, assim como os Quadrinhos, os Videogames e o Funk Carioca. E não há motivo para sequer querer questionar essa afirmação aqui nesse texto, é arte e ponto.
Entretanto, sabemos que há aqueles que teimam em dizer pelo contrário, de questionar tais expressões artísticas a partir de um ponto de vista moral, elitista e nitidamente antipopular (para não dizer outras coisas), com intenção clara de desmerecer essas manifestações culturais e, não só, quem as consome. Ato que é sempre (sendo otimista, é claro) pontualmente respondido com jargões como “Arte não é só o que você gosta”, “Arte é Arte independente do que você pensa dela”, ou ainda “Você tem todo direito de não gostar, mas ainda é arte. Agora, se é boa arte, ai é outra história”.
Não há, portanto, uma resposta clara e objetiva do que se entende como arte. Há, sim, um entendimento, ou uma intuição, por trás do conceito de arte, do que é arte. E é esse o ponto que pretendo responder no decorrer desse texto: “O que é Arte?”.
Mas antes disso, precisamos ter em mente também o porquê de responder a essa pergunta, qual é a implicação de ter um conceito de Arte em mãos. E o primeiro motivo é simples, se queremos apreciar arte e, mais ainda, julgar a arte e analisá-la de maneira crítica, é necessário entender o que ela é para sequer definir critérios, bases, para essa crítica. É fundamental definir arte para não apenas distinguir uma arte ruim de uma arte boa, mas para também saber identificar uma crítica de arte ruim.
E o segundo motivo é que, tendo um conceito claro de arte, fica muito mais fácil desarmar aqueles que tentam deslegitimar uma dada cultura atacando a arte que ela produz.
Tendo isso em mente, o primeiro passo para estabelecer um conceito de Arte é olhar para como a palavra é utilizada no dia-a-dia, fora do contexto da produção artística, para analisarmos estes usos e entendermos a noção que há por trás deles.
Sem ordem específica, o primeiro contexto, que não tem sido tão utilizado nos dias de hoje (ao menos com o sentido que trago aqui), está no termo “futebol arte”, muito comum entre a copa do Japão/Coreia (2002) e da copa da Alemanha (2006), e era utilizado para descrever a maneira como muitos jogadores brasileiros carregavam a bola, driblavam e realizavam passes com o calcanhar ou entre as pernas do adversário.
Opondo-se ao “futebol técnico” ele era elogiado por ser um modo de jogo bonito, que requeria bastante controle da bola (e do próprio corpo) pelo jogador, e que possibilitava desarmar o oponente por sua natureza imprevisível. Por outro lado, também foi bastante criticado por ser pouco objetivo, por vezes arrastar o jogo e produzir poucos lances definidores, ou por ser uma forma de desrespeito ao adversário, por não ser considerado uma maneira “séria” de se jogar, como se um jogador que joga dessa maneira estivesse desprezando o adversário.
Para fora dos campos, o “futebol arte” também era uma forma de colocar o jogador a cima do próprio time. Cada lance, cada drible, cada passe bonito era tão celebrado quanto os próprios gols, ou até mesmo mais valorizados que a vitória de um jogo, o que criava uma mentalidade, ou uma expectativa, de que o jogador tinha que realizar esses lances para mostrar sua performance no campo, ou mesmo para mostrar o quão bom é. O que acabava fugindo dos objetivos do jogo.
O nosso interesse aqui não é o de definir se essa forma de jogar era boa ou ruim, se trazia algum impacto positivo para o futebol ou não, nem mesmo questionar se a cultura entorno desse estilo de jogo pudesse ser prejudicial, mas entender o motivo de chamarem esse conjunto de jogadas, de recursos individuais do jogador, como “futebol arte”.
Algo que não contei até agora, e que talvez você esperasse que eu o fizesse de início, é que a palavra arte vem do latim ars, que significa técnica ou habilidade. Ou seja, o que entendemos como arte é alguma forma de manifestação que se dá por uma técnica ou por uma habilidade, mas… se for assim mesmo, por qual razão o Futebol Arte se opõem ao Futebol Técnico, já que, teoricamente, ambos seriam produtos de uma técnica futebolística… ?
Pode se argumentar que se consideraria o Futebol Arte como mais criativo, como uma expressão do próprio jogador.
Entretanto, não há exatamente um exercício mais criativo de um jogador que utiliza-se dos artifícios do Futebol Arte o tempo todo — que mesmo sem ter um adversário a quem driblar, ou surpreender, utiliza-se do recurso do passe de calcanhar, por exemplo — daquele jogador que de uma hora pra outra lança a bola para um jogador que estava livre do outro lado do campo.
Apesar desse segundo jogador mostrar superioridade em técnica, visão de jogo e até mesmo em criatividade no uso de suas habilidades para criar uma jogada, há uma hesitação de chamar o seu estilo de jogo de Futebol Arte, enquanto o mesmo não aconteceria com o primeiro jogador da hipótese.
Um segundo argumento seria que tais técnicas produzem lances bonitos. Entretanto, afirmar isso seria negar que um bom lançamento para a grande área, um gol de cabeçada e um chute na tabela do gol são considerados lances bonitos do futebol, mas não fazem parte daquilo que se considerava Futebol Arte.
E um terceiro argumento é que aquele estilo de jogo exaltava as habilidades individuais do jogador, o que colocaria o jogador em pé de igualdade com o artista. Porém, habilidades individuais, por si só, como habilidade de desarme, velocidade de arranque, saber se posicionar em campo e de marcação, que são essenciais para um jogador considerado gênio, não faziam o jogador alguém que jogava um futebol arte, e um jogador pouco habilidoso, ou mesmo amador, também poderia aderir àquele estilo. Então não era uma questão de habilidade.
Então, por que se decidiu chamar de arte, especificamente, ainda que não de forma consciente, esse estilo de jogo senão pela beleza e criatividade dele?
Vamos primeiro analisar outros exemplos do uso da palavra arte em nosso cotidiano antes de querer chegar a uma conclusão.
Seguindo, o segundo contexto seria quando queremos elogiar o trabalho de alguém, não apenas pelo resultado daquilo que está fazendo, mas pelo cuidado, capricho ou engenhosidade, pelo modo como ele faz o seu ofício.
Em um exemplo prático. Imaginamos que você contratou um pintor para pintar sua casa. A pintura da casa, por si só, ao menos nesse contexto, não é considerada arte da mesma maneira que a pintura de um quadro. Pintar a casa faz parte da manutenção dela, pois a pintura protege a parede, evitando o seu desgaste e protegendo da umidade, evitando a proliferação de mofos e bactérias, além de facilitar a limpeza do ambiente e na visualização de infiltrações e rachaduras… enfim.
Mas o pintor em questão é bastante cuidadoso, evita o desperdício de tinta, que ela respingue por ai, é todo metódico no seu trabalho e aplica a tinta de um jeito que garante que a pintura fique de fato na parede, durando mais e ficando bem espalhada na parede, etc.
Nesse caso, é bem comum que chamemos pintor de artista, como forma de exaltar o seu cuidado e capricho pelo ofício, ainda que o resultado do seu trabalho não seja considerado uma obra arte no sentido literal.
Outro exemplo. Imaginamos uma mãe que tenha um filho muito brincalhão, que sempre faz muita bagunça pela casa e que sempre acaba envolvendo todo mundo em suas brincadeiras.
Essa mãe, então, quando for descrever o seu filho para outras pessoas, dirá que ele é, sim, muito brincalhão, que dá muito trabalho, está sempre fazendo bagunça, deixa tudo desarrumado e tudo mais, só que, em vez de simplesmente descrever seu filho como bagunceiro, ela também vai chamá-lo de arteiro, dizer que ele não só brinca ou só faz bagunça, mas que ele faz arte.
O último exemplo seria, então, quando nos deparamos com uma paisagem natural muito bonita e deslumbrante, é muito normal ouvir comentários classificando aquela paisagem, aquele conjunto complexo que mistura flora com formações rochosas, como arte.
Com esses novos exemplos, talvez tenha ficado mais fácil de perceber que, quando se utiliza o termo arte para descrever algo, como adjetivo, ele é utilizado como um recurso para exaltar uma ou mais características positivas de um determinado algo. No exemplo da natureza é a beleza, ou mesmo a complexidade daquele arranjo, no trabalho do pintor está o seu cuidado, sua habilidade, atenção ao método e aos detalhes de seu trabalho, e no caso da criança está a sua criatividade, autenticidade, espontaneidade, forma como lida com os objetos da sua realidade e os ressignifica.
Da mesma forma, quando se intitulou um estilo de jogo específico como “Futebol Arte”, a intenção, mesmo que de forma inconsciente, era de dar uma certa validação, ou elevá-lo a um patamar superior, para aquele estilo de jogo, ou mais especificamente para os jogadores que se apropriavam daquele estilo, que, não por coincidência, eram justamente os jogadores brasileiros.
Não é atoa que o termo surgiu justamente após o Brasil ter ganho uma copa do mundo, estar esperançoso quanto a repetição do feito na copa seguinte e numa época que reinava o sentimento de superioridade do futebol brasileiro em relação ao do restante do mundo. E também não é surpresa que o termo tenha caído em desuso (ou seu significado reformulado) justamente quando o hexa não veio, quando esse estilo falhou em mostrar resultado e quando perdemos o sentimento de sermos os melhores do mundo.
Portanto, não há como negar que, nos exemplos acima, a palavra arte possui um uso bastante específico, que é o de ser utilizado como recurso linguístico para exaltar, elogiar, enaltecer algo. Ou seja, naquele exemplo da pintura da casa, quando se chamava o pintor de artista, o que se está fazendo de fato é dizer que o trabalho daquele pintor está em um nível superior ao de outros pintores, que ele é muito bom naquilo que faz etc.
O que, até aqui, não deve ser nenhuma surpresa, dado o que foi dito na introdução desse texto, que o termo Arte carregue consigo uma noção de qualidade, de validade, ou até mesmo de superioridade. Pergunte para qualquer pessoa, mesmo que ela não tenha uma resposta para a pergunta “o que é Arte?”, se Arte é algo bom, se Arte é algo que merece ser valorizado e muitíssimo provavelmente você receberá uma afirmação positiva como resposta.
Mas é importante deixar claro que, ainda que entendamos que a Arte possui um certo status social e que, internamente, delegamos um valor intrínseco a ela, admitir isso não é o mesmo que dizer que algo precisa possuir algum tipo de qualidade, alguma superioridade técnica (ou moral) para ser considerado Arte. Qualidade e aprovação social não são requisitos para a Arte, entretanto, esse preconceito nos ajuda a entender o motivo de certas manifestações culturais não só terem demorado tanto para serem reconhecidas como formas de Artes, como o porquê de certos indivíduos e parcelas da sociedade relutarem tanto em não considerá-las como tal.
Não é surpresa, portanto, que muitas das manifestações citadas até então (lembrando: Animes, Videogames, Quadrinhos e o Funk Carioca) só vão ser consideradas como manifestações artísticas de fato quando elas deixam de ser parte de uma cultura marginal, de nicho, e ganham espaço no mainstream, sendo abraçadas pela cultura pop. E não só isso, o próprio fato dessas manifestações culturais se integrarem à indústria do entretenimento e, como dizem alguns dos defensores dessas Artes, “movimentarem muito dinheiro” contribuiu para aceitação dessas manifestações como Arte.
É por termos figuras como a Anitta, vendas de ingresso expressivas como a de Kimetsu no Yaiba e de Kaguya-sama, inúmeras adaptações de quadrinhos para as telas do cinema e em formato de série, e pelo fato da indústria de jogos digitais ser, hoje, a maior indústria de entretenimento em todo o mundo, que não se questiona (tanto) a validades dessas produções. Afinal de contas, vivemos em uma sociedade capitalista pautada em bens de consumo e, para uma sociedade como essa, vender bem é visto como sinônimo de qualidade, por mais que não realmente seja.
Isto também afeta como enxergamos os próprios artistas, como diferenciamos aqueles que consideramos artistas de fato com os meros aspirantes à arte. Em suma, consideramos como artistas aqueles que são capazes de viver da própria arte, ou mesmo que produzem uma parcela de sua renda a partir dessa produção cultural. Ou seja, para alguém se considerar como artista, ele precisa conseguir algum retorno financeiro desse seu trabalho. O que é, obviamente, uma visão deturpada do que é ser um artista.
E também não dá para assumir que Arte é apenas o que se tem de melhor da produção humana, e ter isso como um conceito real de Arte, porque essa ideia simplesmente não explica o porquê de se considerar o que se considera Arte como Arte e não se inclui, não se encara, outras produções humanas, principalmente das áreas do direito (ciências sociais como um todo), da medicina e da tecnologia, como Arte, literalmente, ainda que façam parte daquilo que há de maior qualidade da produção humana.
Mas, se ser Arte não é uma questão de qualidade, e nem mesmo de aprovação social, e que essas duas coisas são algo que esperamos da Arte, idealizamos dela, mas não parte de sua essência, o que algo precisa ter para ser, de fato, Arte?
Vamos para mais alguns exemplos.
Imaginamos que um redator, um jornalista, está escrevendo um texto de uma notícia qualquer. Esse jornalista tem como objetivo dar a notícia, descrever um acontecimento de maneira simples e com linguagem clara, de modo que os leitores do jornal, site, portal, o que for, sejam capazes de ler e entender aquilo sem perder tempo, sem nenhum rodeio, algo rápido, uma leitura de um minuto no máximo.
Agora, imaginamos que esse redator tenha escrito a notícia, publicado no jornal, ou enviado ela a um superior e que agora esteja com tempo livre. Em vez de utilizar esse tempo para checar e-mails, ver suas redes sociais, ou algo do tipo, ele decide reescrever essa mesma notícia, mantendo a simplicidade do texto e o tamanho, mas acrescentando pequenas rimas, métricas silábicas que deem ao texto alguma sonoridade ou mesmo musicalidade a ele.
Por mais que as mudanças do segundo texto sejam algo sutil, por mais que ambos os textos estivessem igualmente adequados para a publicação no jornal e, mais ainda, mesmo se esse jornalista nunca tivesse escrito a primeira versão do texto, e redigido a notícia com todo esse cuidado com a estética desde o começo, sendo um costume seu, creio eu, podemos concordar aqui que há algo de artístico nessa segunda versão do texto que não há necessariamente na primeira versão do texto. Ou seja, não é que o segundo texto é arte e o primeiro não, mas que há algo no segundo texto que, se não o transforma em arte, o aproxima da arte.
E o que é isso? É por ele se aproximar de uma poesia? Ok, show. Escrever utilizando rimas e métrica, inclusive se preocupando com a sonoridade das palavras, é algo típico da prosa poética. Mas, por que se considera poesia uma arte e o texto jornalístico, a priori, não?
Uma resposta a essa pergunta nos leva a uma concepção mais moderna do conceito de arte, que é o objetivo de cada um desses textos.
Enquanto a notícia tem como objetivo, bom, noticiar alguma coisa, a poesia teria como objetivo a si mesma.
É a ideia de que a Arte é realizada quando se objetiva fazer Arte, quando o objetivo da produção é a própria arte, ou seja, é a “Arte pela Arte”.
Entretanto, além de ser uma noção circular e bastante vaga — já que para entendê-la é necessário saber o que é arte —, essa noção de que a arte é o seu próprio objetivo entraria em conflito com o modo como muito daquilo que é considerado arte hoje em dia é produzido. Afinal de contas, como dito anteriormente, estamos inseridos em um modelo de produção capitalista, em que tudo é produzido com o objetivo de se tornar mercadoria, e a própria Arte não fosse dessa regra, de modo que ela é, inclusive, um dos principal produtos a serem consumidos de maneira massificada. E não faz muito sentido considerar algo menos arte por ser feito “para vender”, pois tudo, ou quase tudo, é feito para se vender.
Essa noção também colocaria a Arquitetura como uma não arte, pois ela tem como objetivo a criação de espaços mais agradáveis, e isso não envolve apenas valores estéticos. A arquitetura também pode ser pensada a partir da forma como tais espaços serão utilizados, ou seja, da utilidade e praticidade desses espaços.
Isso também eliminaria a arte produzida para fins de terapia, ou mesmo a feita com o objetivo da prática e do estudo da própria técnica artistica, seja por estudantes com ou sem aspirações no ofício ou por artistas que buscam melhorar sua própria arte ou testar algo novo. Afinal, não se descartaria uma peça de arte, nem se daria menos valor a ela, por ela ter sido feita em uma sessão de terapia, por exemplo, nem mesmo fruto de um trabalho experimental. Às vezes é justamente o contrário.
E mais, essa concepção também tiraria da arte a possibilidade de ser produzida com outros propósitos além da arte em si. Por exemplo, aquela arte produzida como crítica política ou social, como as próprias charges, que denunciam alguma forma de injustiça, hipocrisia, ou mentalidade torta presente no nosso cotidiano. Ou mesmo que seja feita para fins educacionais, como para ensinar história, geografia, línguas, ou mesmo biologia, como é o caso de Hataraku Saibou (ou Cells at Work!).
Ou seja, os motivos por trás de uma produção artística, assim como o seu contexto de criação, por si só, não bastam para classificar, ou desconsiderar, algo como arte.
Voltando agora para o exemplo do redator, podemos afirmar que o que torna um texto mais ou menos arte em comparação ao outro não é objetivo por trás daquele texto. Afinal ambos os textos têm, em essencial, o exato mesmo objetivo, que é dar luz a um determinado fato e informar dada população. O que muda de um texto para o outro, realmente, é a forma como cada um desses textos está configurada. Em outras palavras, o que quero afirmar aqui é que a essência da Arte está na forma e que aquilo que chamamos de artístico nada mais é do que a preocupação, o cuidado, a atenção para a forma. E não apenas a forma do que está sendo produzido, mas também com a forma como se produz algo. A Arte se torna Arte quando a sua forma, e o como ela se cria, se dá, importa.
Para entender melhor o que pretendo dizer com forma (e principalmente para não confundir forma como mero formato), vou apresentar mais um exemplo de uma produção que não necessariamente seria considerada arte por nossa sociedade, ou mesmo por quem está lendo esse texto, mas que explica bem essa noção de forma.
O ninho do João-de-Barro não é uma obra de arte. Por mais que, dentre todas as aves que constroem ninhos, a casa do João-de-Barro seja uma das que mais nos chama atenção e intriga dada suas particularidades, não é uma obra de arte. O João-de-Barro não constrói seu ninho com objetivo de fazer arte, muito menos para decorar árvores e postes de energia com esculturas de barro, nem mesmo por tradição ou cultura, ele o constrói como uma extensão ao seu comportamento natural, por puro instinto, como uma forma de garantir abrigo, acasalar e proteger seus ovos e sua futura ninhada. E aqui espero não estar falando nenhum absurdo.
Entretanto, pensamos em um acadêmico, um pesquisador que esteja estudando o comportamento do João-de-Barro e que decide, como parte de seu estudo, construir uma réplica do ninho do pássaro. A partir de estudos, gravações de todo o trabalho que o animal tem em construir o seu ninho, o estudioso desenvolve diversas técnicas para replicar essa construção, usa pinças, conta-gotas e dezenas de outros matérias em seu simulacro. Com bastante rigor técnico, ele registra todo o processo, explicado cada detalhe de seu procedimento, o porquê de cada método ter sido escolhido, e como essas técnicas, desenvolvidas para a reprodução do ninho pelo cientista, se comparam ao modo como o próprio animal constrói sua casa.
O pesquisador, então, expõe a peça produzida em uma feira de ciências biológicas, junto de todo o registro de sua produção já com as explicações do porquê dele ter feito aquele ninho da maneira que ele fez.
Nessa exposição, um professor de artes acaba entrando em contado com o trabalho do pesquisador e, reconhecendo aquela peça como algo de valor artístico, pergunta ao pesquisador se ele não gostaria de expor aquela peça também em uma exibição de artes.
Não é muito difícil entender quais motivos levariam um professor de artes a enxergar a réplica do ninho como uma obra de arte. Afinal de contas, é um trabalho de artesanato ainda que a proposta inicial visava um entendimento mais aprofundado do objeto a ser replicado, o artesanato é uma forma de arte e não só isso como muito provavelmente tenha sido uma das primeiras formas de arte a serem reconhecidas como tal.
Portanto, aquilo que torna essa produção hipotética numa produção artística não é o reconhecimento da arte por uma terceira pessoa (afinal o que o professor fizera fora apontar para o que já estava lá), nem mesmo uma criatividade de produção inovadora e menos ainda uma intenção inegável de se fazer arte. Mas a busca por uma forma específica, com inclusive cuidado com o método de produção.
O que diferencia de fato a casa de um João-de-barro com a réplica criada pelo pesquisador não é o formato, já que ambos teriam aproximadamente o mesmo formato, mas como que eles são por essência. Explico, a essência da casa do João-de-barro é ser o ninho do João-de-barro, o que torna esse ninho ele mesmo é o fato de ter sido construído por um João-de-barro, o formato é uma característica acidental, determinada a partir do trabalho do animal, de seu instinto e das condições ambientais (o que inclui as próprias características e capacidades físicas do animal) em que esse trabalho se desenvolveu.
Já no caso da réplica, o que a caracteriza, o que é a sua essência, é justamente aquela forma específica, o formato do ninho do João-de-barro. Se ela tivesse qualquer formato que não fosse ao menos similar ao de um ninho criado por um João-de-barro, deixaria de ser uma réplica, uma simulação, e se tornaria algo diferente, que ainda poderia até ser arte, mas seria outra coisa que não uma réplica.
Em outras palavras, a Arte se torna Arte quando a sua forma se torna sua própria essência. Mas devemos entender também que forma não é apenas o formato físico de um objeto, mas também que som é forma, textura é forma, movimento é forma, sabor é forma, cheiro é forma, organização e composição são forma e até mesmo conteúdo é forma.
O que separa o texto de uma notícia para o de um conto é, por vezes, muito mais o conteúdo do que de fato a técnica narrativa empregada em ambos. Enquanto na notícia o conteúdo está em função de um acontecimento real, externo ao próprio texto, a ser narrado, em um conto o conteúdo da narrativa existe apenas em função da própria narrativa. O que significa que a ficção é arte nata. Mas o mesmo não se pode dizer da mentira, uma vez que a mentira está em função da verdade, sendo que sua essência reside na sua contradição com a verdade e na sua possível pretensão de assumir-se como verdade. Ainda que se possa classificar a mentira como ficção, esse não é o entendimento empregado. Mas não negamos que da mentira não se possa fazer arte, entretanto, a afirmação vale também para a própria verdade, uma vez que nem toda arte é, necessariamente, ficcional.
Entender a arte como forma é um passo importante para compreender também o quão tênue é a linha entre a arte e a não-arte, afinal, tudo possui uma forma, tudo é produzido de uma dana maneira, portanto, toda produção e toda forma possui o potencial de ser ou criar arte. Nesse sentido, muito do que define se essa forma ou esse meio de produção é a própria essência de algo é muito mais nossa relação com esse algo do que suas próprias características materiais.
O que leva uma foto a ser vista como mero registro histórico ou como uma peça de arte, fruto da técnica fotográfica, não é necessariamente os objetos presentes nela, nem a qualidade da fotografia, mas se o que enxergamos na foto é um momento histórico ou a imagem ali eternizada. Sem, é claro, excluir a possibilidade de uma foto ser ambas as coisas.
Tendo um conceito em mãos, o próximo passo seria o de testar esse conceito, aplicá-lo àquilo que tanto se considera arte como aquilo que não é arte e verificar se o conceito é capaz de abarcar todas as formas de arte, ao mesmo tempo que nega a condição àquilo que não o é.
Um exercício que leva a questionar não só o próprio conceito em si mesmo, mas os próprios preconceitos internalizados a respeito de cada uma possível forma de arte. E acredite, esse é um exercício que faço constantemente desde quando iniciei minha pretensão de definir arte, mas principalmente quando comecei a escrever esse texto, o que me levou não só a reescrita desse ensaio como a própria reformulação do conceito aqui apresentado.
Poderíamos reproduzir parte desse exercício, exemplificando com as artes mais diversas possíveis, mas creio ser mais frutífero aqui deixar aberta a sugestão para você, leitor, que fizesse esse exercício por conta para não tornar a leitura tão massiva e esse texto ainda mais longo. Mas é importante ressaltar de que essa definição, da arte como forma, é bastante ampla, e que por isso é natural encontrar formas de artes que, numa primeira instância, não consideraríamos como arte, mas que, após reflexão, encontramos sentido em considerá-las como tal.
É o caso de arte como sinónimo de técnica, ou seja, ars, em especial quando essa técnica não é utilizada para a produção de algum tipo de arte. Como é o exemplo da arte cirúrgica em que a cirurgia em si não é uma arte, mas uma intervenção médica cuja forma se caracteriza por conveniência e eficiência, de modo que a forma é acidental e não sua essência. Contudo, a técnica cirúrgica, vista apenas como uma técnica e não mais que isso, é sim arte, pois é método e método é pura forma.
Poderíamos até separar as técnicas em dois grupos sendo um deles composto com as que produzem arte, leia-se técnicas artísticas, e o outro com as que não e considerar apenas o primeiro como arte de fato. Mas esse é um discernimento que eu particularmente não faria.
Ainda, vale evidenciar que a improvisação é um exercício artístico nato, e que produz arte mesmo que a forma que resulta desse exercício não tenha sido planejada ou mesmo almejada pelo artista. Da mesma forma, o erro e o acerto acidental ainda não são capazes de retirar a forma da essência da arte material, pois uma arte deixaria de ser ela mesma caso retirarmos dela seus acidentes, ou seja, aquilo que fugiu da intenção do artista mas que afeta a forma que a arte tem.
Arte Gerada por Inteligência Artificial é mesmo Arte?
A pergunta a cima é objetiva e não precisa de explicação, a resposta para ela também é direta e não precisa de rodeios: a Arte Gerada por Inteligência Artificial, seja ela texto, imagem ou até mesmo música, é arte tanto quanto aquela produzida pela mão humana. Afinal de contas, a imagem criada, por exemplo, é uma imagem como todas as outras, e portanto é essencialmente forma e como visto isso é arte por definição.
A questão mais importante a ser discutida a respeito da produção de arte através do uso de inteligência artificial é na realidade se a autoria daquilo que é produzido pertence ou não a quem ordenou que a IA produzissem aquele material.
Em outras palavras, a pergunta se faz é se a Inteligência Artificial aqui é um mero instrumento da produção artística realizada por um autor humano, ou se ela é quem realmente produz a arte em questão. E, da forma como as IAs que produzem esse tipo de conteúdo funcionam atualmente, ainda que elas possam eventualmente evoluir para se tornarem um instrumento possível ao artista, hoje não dá para dizer que a autoria da arte gerada por Inteligência Artificial é de quem deu a ela as instruções de seu trabalho. Explico.
Quando alguém contrata um artista para, por exemplo, pintar um quadro ou criar uma ilustração digital, por mais que o contratante dê instruções bem específicas quanto ao como quer que essa arte seja, quem é o autor da imagem produzida é o artista e não o contratante. Por mais que essa seja uma resposta intuitiva, é importante ter claro o porquê disso ser também uma afirmação verdadeira: se arte é forma então o responsável pela a sua criação é quem é o autor. Não importa se quem deu a ideia, quem criou o conceito por trás da arte, for outra pessoa, a partir do momento que a arte em questão não é mera ideia, mero conceito, mas uma forma específica, quem criou a forma é o autor dela.
O mesmo vale para a arte gerada por IA. Por mais que a Inteligência Artificial não seja um ser autônomo, isso é, um ser que cria por conta própria, por mais que ela precise de um input humano para que produza algo, pelo fato desse humano não ter o controle algum da forma criada, ele não é o autor dela.
Pode se argumentar que alguém com mais experiência com um programa específico de IA tem mais capacidade de saber quais as instruções que ele precisa dar ao programa para a IA gere o resultado que ele quer. Mas isso apenas significa que essa pessoa já sabe como essa Inteligência Artificial responde aos comandos que ele pode dar a ela dada a sua experiência com o programa, e não que ele tem de fato controle da forma que está sendo criada.
É diferente do relacionamento que um artista digital tem com um programa de ilustração, em que o artista controla cada uma das ações executadas pelo programa durante a criação de uma peça. Ou seja, quem é responsável pela criação daquela forma é o artista e não o programa, esse segundo é apenas um instrumento utilizado para a criação do artista.
Contudo, dizer que a arte gerada por uma Inteligência Artificial não é de autoria humana não é o mesmo que dizer que a arte gerada por essas IAs não possam ser utilizadas na criação de uma arte de autoria humana, mas para isso é necessário que a mão humana utilize dessas criações para construir uma outra forma que seja diferente daquela gerada por um programa. Da mesma forma que, quando alguém se utiliza de fotografias, que não são de sua autoria, em uma montagem no photoshop, o que dá a autoria da imagem criada é a composição feita com aquelas imagens, e não a autoria das imagens em si, essas são apenas peças da composição, e não é necessário ser autor de um peça para ser autor da composição composta por ela.
Outro ponto importante em relação a autoria da Inteligência Artificial é a quem se atribui a autoria da própria Inteligência Artificial. Hoje, quem cria a Inteligência Artificial é inicialmente uma equipe de desenvolvedores, de programadores, que alimentam essa IA com um banco de dados, esses dados, principalmente quando falamos de IA especializadas na produção de imagens, tem uma outra autoria, essa de pessoas que não necessariamente concordaram em fornecer as suas produções ao banco de dados dessas IAs. E, ainda, temos mais um terceiro grupo de pessoas que é responsável pelo treinamento dessa Inteligência Artificial, que são responsáveis em apontar os resultados da IA e dizer a ela se eles são os resultados desejados ou quais resultados dela deveria obter.
Ou seja, no próprio desenvolvimento da IA como uma técnica de produção temos diversos agentes responsáveis por ela, o que se torna um problema quanto aquilo que é produzido através dela pois não se tem o controle, o conhecimento, dos processos que a IA toma na geração de uma imagem, por exemplo, e portanto não dá para atribuir responsabilidade, e portanto autoria, aos comportamentos dessa IA. Claro, como ainda é possível definir certos comportamentos da IA de maneira arbitrária, esses teriam sim um responsável claro, mas são a exceção.
Claro, também é importante dizer que a arte não precisa ter necessariamente apenas um autor, basta olhar a quantidade de pessoas envolvidas na produção de um filme, de uma animação e de um videogame para compreender que afirmar isso estaria bem longe da verdade. Da mesma forma, é possível que um artista desenvolva o seu trabalho em conjunto da IA em vez deixá-lo todo o trabalho para ela, o que tornaria a IA coautora da arte, mas não um instrumento.
Da Forma à Crítica
A partir do momento que consideramos a arte como forma em sua essência, nada mais natural do que pensar que a crítica de arte deve se voltar exclusivamente para a própria forma da arte em si, e que criticar arte se traduz em avaliar se a forma que a arte possui é boa ou não, nos levando a indagar o que seria “uma boa forma”.
Mas olhar para forma, de maneira exclusiva, seria o mesmo que admitir que a arte tem como si própria o próprio propósito e nada mais que isso. Seria dizer que arte tem como objetivo apenas ela mesma, e já como afirmado no começo do texto, não se nega à arte a pretensão de se objetivar algo que além da própria produção de arte.
Portanto, para criticar arte e se estabelecer o que se deve criticar da arte devemos pensar o porquê da arte. Não só os motivos pela qual ela é feita mas também os motivos pela qual ela é consumida e apreciada. O quê a arte quer e o quê se quer da arte.
E é nesse ponto que chegamos à conclusão que não há formula, não há regra geral do que deve ser avaliado em uma obra de arte. Porque, por mais que a arte se defina por ter sua forma como essência, quanto ao quê se pretende dessa forma não há regra que defina. E o que vai definir de fato os critérios de avaliação da arte vai ser a própria arte, em seu carater individual.
Por isso, pretendo muito mais encerrar esse texto com uma reflexão sobre a crítica de arte do que trazer algo mais definitivo ou mesmo concreto, como me propus do restante do texto. Por mais que ainda possa haver dúvidas sobre o que define a essência de algo, ou mesmo se essa é a melhor definição para arte, ou mesmo uma definição acurada, o fato é que há uma resposta dada para a pergunta central do texto.
Dito isso, vejo dois vieses que a crítica pode se imbuir, um não excludente do outro, na realização de seu trabalho. O primeiro seria aquele que vamos chamar aqui de objetivo, que consistem em desmembrar a formação da arte em si.
A arte não é criada em um vácuo, ela tem um (ou mais) criador que vive em uma dada sociedade, num contexto social, econômico e cultural específico, que tem contato com certas ideias, experiências, vivências, outras artes, ideologias e técnicas que o influenciam na construção da arte do jeito que ela é, através da aplicação dessa bagagem social e artística, e dentro dos limites das suas capacidades técnicas, materiais etc.
Quais técnicas e o como o artista as utilizou, de quais ideologias bebeu e quais possíveis referências, pretensões (o que queria externalizar) e quais condições ele teve na criação de determinada forma são questões que devem respondias em uma crítica de caráter objetivo. Ou seja, qual é o percurso que for traçado até aquela forma ser alcançada.
Agora, o segundo viés, que não surpreendentemente chamaremos de subjetivo, é aquele que parte da forma para quem a consome. Ou seja, é na avaliação do impacto que aquela arte possui nas pessoas, do como a forma é percebida e recepcionada por essas pessoas.
Seja para rir, chorar, sair da rotina, vivenciarmos realidades distintas da nossa ou refletir a respeitos dos mais diversos temas, experienciamos arte porque ela nos traz algum impacto, porque ela provoca algum tipo de sentimento em nós e temos determinadas sensações ao entrarmos em contato com ela.
E é claro, o modo como uma determinada obra será recebida pelo público que a consumirá dependerá não só da forma que a obra tem, mas das condições que essa recepção ocorrer e em quem são as pessoas que vão experienciar o seu conteúdo.
É por isso que tenho textos como Essa tal de imersão. e Como o Hype dita nossos gostos, pois as pessoas não percebem a arte da mesma maneira, e não é por uma questão de intelecto ou capacidades cognitivas, elas procuram coisas diferentes das e nas artes que consomem, são influenciadas pelo contexto, pela expectativa de criam, pelo modo como consomem essas obras de arte. Ao mesmo tempo que o viés ideológico e a bagagem cultural influenciam e muito naquilo será visto por alguém.
Por fim, é muito importante tem conhecimento de que, ainda que o crítico tenha contato direto apenas com as sensações que ele mesmo teve com o contato com uma obra, uma crítica que ignore, negue, ou simplesmente não compreenda os porquês de uma peça de arte ser apreciada pelo público geral, é uma crítica apática a própria produção artista e a cultura na qual tal arte está inserida.
Não importa se ela lota um estádio de futebol, um palco de teatro, ou ruas da periferia de uma metrópole qualquer, se a arte é capaz de unir pessoas, fazê-las sorrir, dançar e cantar, ela terá cumprido o seu propósito de ser.
Porque se a arte tem um só propósito é esse: O de fazer a vida ser mais do que mera sobrevivência.