O Problema do Licenciamento de Animes no Brasil

Marcelo Hagemann Dos Santos
10 min readJul 13, 2020

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Nota inicial: esse texto foi concebido e escrito antes da Funimation liberar seu serviço no território brasileiro (hoje, dia 18/11/2020), ainda que minha opinião como um todo sobre o tema não tenha mudado drasticamente, isto deve ser levado em conta já que algumas informações presentes no texto podem estar defasadas no momento da sua leitura.

Anime: Kyoukai no Kanata

A Funimation mal chegou ao Brasil e já causou o seu impacto. Ainda sem especificar como funcionará a sua atuação dentro do país, se trará apenas animes dublados ou se terá também a opção de animes legendados, o quão extenso será o seu calendário no território nacional e a que preço, bastou que a empresa anunciasse a sua entrada no país para que a concorrente, Crunchyroll, retirasse o acesso de três temporadas de um dos seus títulos mais populares dentro do Brasil, limitando a disponibilidade de Boku no Hero Academia a apenas a sua quarta temporada.

O fato de a quarta temporada permanecer no catálogo levanta o questionamento se a Crunchyroll adquiriu os direitos dela através de outra detentora dos direitos de distribuição da série.

Ainda que ambas as empresas não tenham se manifestado sobre o ocorrido, é muito provável que a remoção das três primeiras temporadas do catálogo da Crunchyroll seja de fato dado a entrada da Funimation no Brasil. Ao mesmo tempo, não se sabe dizer se a chegada do serviço da Funimation afetará (ou se já não afetou) outros títulos que a Crunchyroll disponibiliza para os seus usuários.

De qualquer forma, Boku no Hero Academia já era um caso especial dentro da Crunchyroll brasileira, uma vez que o título não fazia parte da plataforma no início da transmissão da primeira temporada, mas acabou entrando no catálogo brasileiro depois que a Crunchyroll e a Funimation iniciaram uma parceria em setembro de 2016, permitindo que a Crunchyroll disponibilizasse alguns dos títulos licenciados pela Funimation dentro do território nacional. A parceria acabou se encerrando em novembro de 2018, o que a princípio não afetou os títulos que já estavam disponíveis dentro da Crunchyroll (no Brasil, pois nos Estados Unidos, Boku no Hero Academia saiu da plataforma junto com o termino dessa parceria), mas afetou consideravelmente os licenciamentos das temporadas que vieram a seguir.

Se você leu a minha publicação em que comento sobre meus primeiros textos aqui no Medium, especificamente a parte em que comento sobre o texto que fiz sobre minha relação com a Crunchyroll, já deve saber do que estou falando, e possivelmente deve ser capaz de imaginar os pontos que levantarei ao decorrer desse texto. Mas não custa repetir algumas coisas.

Desde o fim da parceia entre a Crunchyroll e a Funimation, a porcentagem de animes licenciados pela Crunchyroll no Brasil caiu consideravelmente. Se com a parceria ao menos 2/3 dos animes da temporada mais aguardados pelos fãs brasileiros eram disponibilizados pela Crunchyroll, depois dessa, sendo otimista, essa estimativa caiu para 1/3. O impactado com isso foi, sem sombra de dúvidas, o consumidor, que perdeu o acesso legal a esses títulos sem que lhe oferecem outra alternativa a não ser deixar de consumir os seus animes de interesse, ou recorrer a recursos paralelos.

É claro, a Crunchyroll não é o único serviço que distribui animes no Brasil. Tanto a Netflix como a Prime Video disponibilizam uma parcela de títulos aos seus assinantes (a maioria deles exclusivos), mas como não são nem de perto serviços focados na distribuição de animes, não apenas a quantidade de títulos oferecidos é baixa, como é pouco provavelmente que o consumidor de anime pague por esses serviços com o objetivo ter acesso aos animes da plataforma. Mas sim que alguém de sua família assine o serviço e que ele de vez em quando utilize o serviço para assistir os animes disponíveis por lá (como é o meu caso com a Netflix).

Aliado a isso, a Netflix não distribui os episódios de suas séries semanalmente como a Crunchyroll, e disponibiliza todos os episódios de uma vez só, por vezes meses após a exibição original. E como a Prime Video não é um serviço dedicado a animes, como a própria Netflix, há pouca divulgação sobre a disponibilidade de seus animes no Brasil, de modo que não saberia dizer de que formas seus exclusivos — como Vinland Saga e Babylon — foram distribuídos aqui no Brasil.

Ainda temos no Brasil a Hidive, que oferece uma parte do seu catálogo de forma gratuita, similar à própria Crunchyroll, mas que por outro lado nem sequer possui o site traduzido para o português, e não comunica de forma clara quais animes possuem legenda em nossa língua (isso é, se ainda possui algum anime legendado em PT-BR). De forma que é difícil sequer considerá-lo como um serviço disponível dentro do território nacional.

Com isso podemos concluir que, na prática, enquanto a Funimation não inicia de fato suas atividades no país, a Crunchyroll não possui muita concorrência no território nacional quando se trata de simulcast — ou seja, da distribuição de animes no Brasil em conjunto da exibição desses títulos na televisão Japonesa. O que se torna um problema visto que, se um título não está disponível na Crunchyroll, esse automaticamente se torna indisponível no Brasil. E isso alienia o mercado brasileiro, uma vez que os detentores do licenciamento desses títulos, ao não disponibilizarem esses títulos em qualquer plataforma, acabam entrando no caminho de quem só quer acompanhar suas séries favoritas junto de todo mundo.

Mas é claro, isso é só um problema para quem quer acompanhar os animes da/na temporada. Para aqueles que não se importam em esperar um pouco mais pela disponibilidade desses títulos nas outras plataformas o problema parece não impactar. Isso é, quando esses outros títulos realmente chegam a alguma das concorrentes. E mesmo quando chegam, nem sempre a notícia se espalha por toda a comunidade, de modo que mesmo aqueles que possuem acesso a plataforma [em que tal anime está disponível] acabam o consumindo por um caminho alternativo ou nunca o fazem.

Tudo bem, falta de comunicação é algo que se resolve, ou no mínimo se aprende a lidar. E por mais que a informação não se espalhe de maneira clara para todos, ela está em algum lugar, quem realmente quer assistir um anime licenciado pode muito bem pesquisar sobre o título em questão e descobrir onde ele está disponível, não é mesmo?

Sim… a partir do momento que alguém possui acesso a diversas plataformas de streaming, e essa pessoa quer assistir algo específico, ela pode muito bem ir atrás dessa informação e pronto. Mas aqui entramos em um primeiro problema com a fragmentação dos serviços de streaming, que ironicamente é justamente a falta do que chamou a atenção do mundo inteiro para esse tipo de serviço:

Quando a Netflix entrou com força no mercado, o maior e mais frequente elogio em relação ao serviço era a sua praticidade. Bastava logar no site que se tinha acesso a um acervo praticamente inesgotável de séries e filmes na ponta dos dedos. O que se dizia, na época, é que o serviço “se pagava” por ser muito mais prático, fácil, e simples do que pagar por um serviço de tv paga, ir na locadora ou mesmo baixar um arquivo pela internet. Não era preciso se preocupar com as legendas, qualidade da imagem, com o horário, em ficar atento a catálogos de programação de canais de tv, sair de casa ou se o aparelho de DVD/Blu-ray estava funcionando. E o melhor de tudo, não era tão caro.

Mas é claro, nem tudo estava disponível na Netflix, mas o serviço era tão prático que “estar ou não na Netflix” era o critério único a ser visitado na decisão do que assistir, ou se assistir.

Com o sucesso da Netflix outras empresas, vendo o potencial desse tipo de serviço, decidiram entrar no ramo, muitas delas já conhecidas de quem já assinava canais pagos. Como o canal HBO, com sua plataforma HBO GO, a distribuidora de telefone, internet e tv a cabo, Net com o Now, a própria Disney que resolveu criar sua própria plataforma através do Disney+… enfim, a lista é grande.

E quanto mais empresas entram no ramo, e mais elas declamam para si exclusividade sobre séries, filmes e os próprios animes, menos prático cada um desses serviços se torna. E se não bastasse só não ser nada prático ter que memorizar várias senhas (ao risco de esquecer de algumas, ou de tornar suas contas cada vez mais vulneráveis) e ter que migrar de um serviço para o outro, cada um desses serviços se torna mais custoso, e com um catálogo de títulos de interesse cada vez menor para os seus assinantes, tornando-os cada vez menos atrativos e menos viáveis financeiramente.

Talvez o impacto dessa fragmentação de serviços e do licenciamentos não seja tão grande no que toca séries e filmes, talvez a maioria das séries populares estão disponíveis em diversas plataformas, de modo que o consumidor não precise assinar diversos serviços para consumir aquilo que quer. Mas de todo modo, não é isso o que vemos em questão de animes no Brasil. O que temos é a Crunchyroll detendo exclusividade da maior parcela dos títulos aqui no Brasil, a Netflix de outra, menor mais ainda considerável, e a Prime Video de uma parcela mais modesta. Com apenas uma dúzia de títulos disponíveis em mais de uma plataforma, como por exemplo Kiseijuu-Sei no Kakuritsu, que está disponível tanto na Crunchyroll como na Netflix. Ou seja, a exclusividade parece ser a regra, enquanto deveria ser a exceção.

Com isso não quero dizer que a Crunchyroll não tem direito de possuir os seus exclusivos, ou de deter domínio sobre suas próprias produções, como Tower of God ou o atual The God of High School. Mas não vejo muito sentido em, por exemplo, a Netflix deter exclusividade de Code Geass, sendo que ela não produziu o anime.

E com a vinda da Funimation para o Brasil, esse cenário parece que vai mudar? Ao que tudo indica, não. Talvez tenhamos finalmente acesso a certos títulos que até então estão indisponíveis nas plataformas brasileiras (exemplos dessa temporada; Lapis ReLiGHTs e Uzaki-chan wa Asobitai!), mas é difícil imaginar um cenário em que a Funimation tenha em seu catálogo muitos animes que estão disponíveis em outras plataformas, não impossível, mas o mais provável é que o seu catálogo seja composto majoritariamente de exclusivos, assim como nos outros serviços.

Há quem diga que a concorrência da Funimation com a Crunchyroll significaria uma melhora do serviço de ambos, mas isso me parece uma grande inocência por dois motivos (ambos ignorando o que acontece na prática). A primeira delas é justamente a exclusividade de títulos que cada uma das empresas possui, não faz sentido falar em concorrência se para acompanhar Yahari Ore no Seishun Love Comedy wa Machigatteiru. Kan preciso assinar a Crunchyroll, e se quero acompanhar Deca-Dence tenho que ter uma conta da Funimation. Não há uma escolha, em parte do consumidor, em escolher por qual serviço acompanhar suas séries favoritas, pois cada uma delas está disponível apenas em um serviço. Se há uma escolha do consumidor é por quais séries assistir, e ai é questão de sorte, porque não é como se a Funimation ou a Crunchyroll licenciasse obras com um teor específico, não, ambas buscam ter uma variedade em seus catálogos.

Não é como se, por exemplo, todas as comédias estivesse em apenas uma delas, e a outra tivesse apenas séries de ação. Se esse fosse o caso, não haveria ocorrências como o de Jashin-chan Dropkick, em que a segunda temporada está disponível na Crunchyroll, e a primeira sabe-se lá onde. E acredite, essa não é uma ocorrência rara, como é atualmente o caso de Boku no Hero Academia, em que só a última temporada está disponível, e o recém mencionado Yahari Ore no Seishun Love Comedy wa Machigatteiru, que está na mesmíssima situação.

No caso de Jashin-chan, a Crunchyroll criou uma página exclusivamente para a segunda temporada.

NOTA: Em relação ao caso da Jashin-chan, a Malu Arantes apontou nos comentários que a primeira temporada é de exclusividade da PrimeVideo, e está disponível na plataforma com o título “Um Chute no Meu Diabo”, mas é claro, só a primeira temporada (e o episódio 12, não exibido na TV) está lá.

Já em relação à Yahari Ore no Seishun Love Comedy wa Machigatteiru, a Crunchyroll anunciou hoje (1 de outubro de 2020) a inclusão das duas primeiras temporadas ao catálogo da plataforma.

Ainda, esse argumento da concorrência ignora o fato de que, sim, a Crunchyroll tem se importando em prestar um bom serviço para os seus assinantes (ou melhorar o seu serviço). Seja por ser uma das poucas empresas com uma conta ativa no twitter, sempre interagindo com os assinantes ou tirando dúvidas. Ou por manter o site atualizado, inclusive, além do player ser relativamente novo, essa semana o próprio App para Smartphone foi atualizado, ainda que essas ações sejam insuficientes para sanar os supostos problemas do serviço da Crunchyroll, ou de mudar a impressão que a empresa tenha naqueles que não assinam os seus serviços. Afinal de contas, o outro ponto que esse argumento ignora é que, sim, a concorrência já existe.

Não adianta fechar os olhos e achar que todo mundo consome anime legalmente, e que não há métodos de, por exemplo, burlar as restrições regionais da própria Crunchyroll, ou acessar sites internacionais, através de um programa de VPN. A própria pirataria acaba se tornando uma alternativa aos serviços de streaming, seja pelo consumidor considerá-los um serviço ruim, péssimo, imprático, desproporcionalmente caro, ou que não atenda as suas necessidades. Seja pela falta de títulos específicos no catálogo, legenda de má qualidade, demora na disponibilização dos episódios, baixa qualidade dos mesmos, e até mesmo o empecilho causado pela instabilidade da rede, ou falta de velocidade de banda para assistir online com a qualidade prometida (aliado a não opção de baixar previamente os episódios de certos serviços).

E não adianta querer criminalizar o consumidor por recorrer a esses métodos, por qualquer que seja o motivo. Pois, afinal de contas, esses acabam se tornando apenas um mecanismo de defesa contra as práticas injustas e abusivas do mercado, sem ter que abdicar ao direito e acesso à cultura.

Já que a alternativa a pirataria não é a legalidade. Ela é, na maioria das vezes, nem sequer assistir.

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Marcelo Hagemann Dos Santos
Marcelo Hagemann Dos Santos

Written by Marcelo Hagemann Dos Santos

Rapaz de humor duvidoso que entrou essa de escrever sobre animes recentemente. Ex-aluno de filosofia e graduado em Letras, mas sempre estudando.

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