Isekai: um sintoma de uma época

Marcelo Hagemann Dos Santos
28 min readJul 25, 2024

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Eu e meus casinhas percorrendo o mundo na busca de mais um isekai para assistir em Lv2 Kara Cheat datta Moto Yuusha Kouho no Mattari Isekai Life

Dizer que Isekai tem sido uma constante no mundo dos animes é nada mais do que constatar o óbvio. Basta ver qualquer grade de lançamento dos animes da semana para encontrar alguns títulos que tenham, senão a própria palavra no nome, Isekai como premissa.

Isekais se tornaram tão comuns que o conceito acaba se confundindo com um subgênero de fantasia que tem mundos fantásticos como sua base de ambientação. Sendo o fenomenal Sousou no Frieren e o delicioso Dungeon Meshi (ou Delicious in Dungeon, ou ainda Marmitas das Masmorras) as vítimas mais recentes desse tipo de confusão.

Mas o que torna o conceito tão popular? Responder a essa pergunta não é tarefa fácil pois não há um só motivo que torna a ideia de isekai atrativa tanto para o público como para produtores ou mesmo o próprio mercado. A avaliação mais correta, me parece, é a de que há uma amalgama de fatores que juntos fizeram com que isekai se tornasse tão presente nas publicações atuais.

Antes de apontar quais seriam esses fatores, devo dizer que não há como apontar que essa tendência atual dos isekais é resultado da popularidade dessa ou daquela obra. Afinal, isekai não é um conceito novo em animes. Por exemplo, a minha geração cresceu assistindo Digimon e InuYasha na tv brasileira no começo dos anos 2000, mas mesmo nos anos 90 já havia uma série de títulos que, da sua própria maneira, abordavam o tema, como Ima, Soko ni Iru Boku, Fushigi Yuugi e Magic Knight Rayearth*. E com o consumo de animes passando da tv para a internet, otakus brasileiros ainda tinham contato com o conceito através de obras como Zero no Tsukaima ou mesmo com Dog Days, que não são agrupadas com os animes da “febre” atual de isekai.

*que inclusive teve anime novo anunciado enquanto escrevia esse texto.

Mesmo Sword Art Online, que é por muitos é considerado o grande responsável pela forte gameficação presente nas histórias de isekais, não foi o primeiro a trazer o conceito “preso em um mundo de videogame” para a indústria de animes, com .hack//SIGN estreando na televisão japonesa 10 anos antes.

É muito provável que autores atuais de fantasia tenham crescido acompanhando essas obras, que mais tarde os influenciariam a escrever suas próprias histórias. Porém, ainda que se possa apontar animes mais antigos que compartilham desse conceito, não há como medir quais das obras foram mais impactantes nas mentes desses criadores, e quais delas realmente os influenciaram a criar seus próprios mundos de fantasia com protagonistas da nossa realidade. Por exemplo, não é porque Seisenshi Dunbine foi o primeiro, ou um dos primeiros, anime a conter o tema que ele tenha alguma influência nessa tendência, ou que haja algo que impeça Mushoku Tensei de ter influenciado os principais autores que iniciaram suas próprias publicações logo depois dele.

Claro, tratando-se de obras específicas e de seus respectivos autores é possível sim descobrir as suas influências, desde que o próprio as exponha de alguma forma. Como é o exemplo do autor de Mushoku Tensei, Rifujin na Magonote, que em entrevista recente afirmou que a obra não existiria se não fosse por outra obra isekai, Re:Monster.

Muito provável que as obras citadas aqui tenham sim uma grande influência nessa tendência do mercado de animes, além de muitos outros títulos que acabaram ficando de fora. Mas apontar qual dessas obras são as mais influentes seria uma especulação que exigiria uma coleta grande de dados.

Tendo isso posto de lado, vamos agora elencar quais são os fatores que tornam isekai um conceito tão popular nos dias de hoje.

Powerfantasy são legais

Seiya, protagonista de Shinchou Yuusha: Kono Yuusha ga Ore TUEEE Kuse ni Shinchou Sugiru, é um herói que não conhece o conceito de pegar leve.

Primeiro ponto é direto e simples. Isekai é um conceito tão presente nos dias de hoje porque dá espaço para as mais diversas fantasias de poder. Afinal de contas, ver dois ou mais personagens hiper poderosos brigando com o uso de magias visualmente hipnotizantes é um atrativo por si só. Não atoa que aqui no Medium já escrevi não um, nem dois mas três textos sobre como a presença desses personagens super poderosos pode impactar uma narrativa.

Claro, fantasias de poder não são exclusividade de isekais, pelo contrário, são um elemento fundamental para todo o gênero de fantasia. Mas existe algo que torna esse componente ainda mais apelativo em narrativas que envolve isekais do que em outras formas de fantasia, que é o fato de isekais partirem do comum, do banal, como ponto inicial. Isso não só serve como ponto de comparação para os elementos fantasiosos dentro da obra, como é utilizado como um forma do próprio telespectador poder se colocar naquela obra.

E quando falo de fantasias de poder não me refiro apenas aquela que envolve poderes de luta, magias capazes de causar grande destruição ou capacidades atléticas heroicas e que desafiam as leis da física, mas de toda forma de poder, toda a capacidade de domínio, como o poder político ou o de sedução. Assunto que eu já desenvolvi no segundo texto sobre personagens OverPower (linkado anteriormente), mas fantasias de poder, ou PowerFantasy, é um tema que merece o seu próprio texto.

Comportamento “Natural” do Mercado

Távola redonda de Log Horizon, onde os líderes das guildas decidem os próximos passos dos jogadores presos em um mundo de videogame.

Outro ponto fácil de ser explicado é que a própria forma como o mercado* se estrutura, e isso está longe de ser uma exclusividade da indústria de animes, promove esse tipo de tendência.

*Entenda mercado pelo conjunto de agentes responsáveis pela produção, circulação e venda de um determinado tipo de produto.

Quando uma obra faz muito sucesso, é natural que produtores e comitês responsáveis por decidir o que será produzido nos próprios mês, ou mesmo anos, estejam mais propensos a aprovar outros projetos com características semelhantes a essas obras de sucesso. Dai, toda vez que um isekai se torna sucesso*, e definitivamente não tivemos apenas um isekai que fez grande sucesso nessa última década, mais isekais são feitos.

*Só para citar alguns, Re:Zero, KonoSuba, Overlord e Youjo Senki são sem dúvida as obras mais importantes da construção dessa tendência dentro do mercado de animes — recebendo adaptações bem no começo da dita febre — e duvido que tenha sido diferente no mundo das Light Novels. Não atoa, os quatro receberam um sprinoff em que personagens de ambos os títulos interagem entre si em um ambiente escolar.

Ao mesmo tempo, os próprios criadores das obras, sendo influenciados por essas obras populares ou na busca de criar algo que seja de interesse do público, acabam seguindo essas obras populares. O que torna os elementos delas tendência em obras futuras.

Nós já tivemos outras tendências similares, porém não tão duradouras e intensas quanto essa dos isekais, na indústria de anime. Por exemplo, as diversas Romcoms do início dos anos 2000 (e até um pouco antes) que eram em sua grande maioria adaptações de Visuais Noveis. Animes como as adaptações da Key, Clannad, Air TV, Kanon (que recebeu uma segunda adaptação em 2006), são exemplos de animes dessa tendência.

Mas também vimos uma enxurrada de animes de escola de espada e/ou magia um pouco antes de isekai virar a grande moda. Exemplos desse tipo de anime são Seirei Tsukai no Blade Dance, Gakusen Toshi Asterisk, Rakudai Kishi no Cavalry e Saijaku Muhai no Bahamut.

Porém, não é porque essas tendências passaram que animes como esses deixaram de existir, Mahouka Koukou no Rettousei, com suas recentes novas temporadas, e o estreante Tsue to Tsurugi no Wistoria não me deixam mentir, só não são tão comuns quanto eram antes.

Vício de mercado

É tudo sobre dinheiro. (Fonte: Rougo ni Sonaete Isekai de 8-manmai no kinka wo tamemasu)

Similar ao ponto anterior, o mercado busca produzir aquilo para qual há demanda. Acontece que o modo como o mercado mede essa demanda é através daquilo que é consumido*. E o consumidor, por sua vez, vai consumir aquilo que lhe for disponível. De modo que, como há uma oferta grande de isekais no mercado, o consumidor de anime, sabe, aquele que acompanha todo tipo de anime, também vai consumir bastante os isekais.

*E aqui é importante entender “consumo” não apenas o consumo direto de mercadorias e da própria produção do mercado em questão (animes, nesse caso), mas também toda a forma de consumo indireto que possa ser medida pelos agentes do mercado. Inclusive, eu já explorei esse tema aqui no Medium.

Ou seja, a tentativa de suprir uma demanda gera a própria demanda. É um circulo vicioso que acontece em todo o tipo de mercado. Mas, normalmente, esse vício de produção tem o seu limite, em algum momento o mercado torna-se saturado com aquele formato, com esse ou outro tema, de modo que o público perde o interesse e passa a consumir cada vez menos.

O problema de isekais é que, como ele por si só não é um gênero narrativo, mas uma espécie de premissa, um ponto de partida para a história, posto de maneira simples; tem isekai pra tudo quanto é gosto. Como já desenvolvi no meu texto em que explico o conceito de isekais com mais detalhes. Alguns isekais serão aventuras, outros podem envolver drama, alguns terão o foco apenas na comédia e ainda há aqueles que se focarão apenas no dia-a-dia dos personagens sem ter uma narrativa pretenciosa. Enfim.

O que significa que o ponto de saturação dos isekais não vai ser tão fácil de ser atingido quanto o de outras tendências por ai.

Adicionalmente, o próprio fato de que há essa percepção, sendo ela falsa ou verdadeira, de que há muito mais isekais no mercado do que “deveria”, leva as pessoas a discutirem, comentarem, nem que seja para tirar sarro, de cada isekai novo lançado. O que coloca esses títulos que em outros casos passariam batidos em maior evidência, o que volta e meia leva as produtoras a produzir mais animes isekai por conta do entendimento de que eles provocam engajamento.

Produção Industrial

Knight’s & Magic é um isekai que mistura escola mágica e robôs gigantes.

Outro fator que faz com que esse tipo de tendência ocorra é o próprio modo como animes são produzidos hoje em dia.

Quando uma produtora vai decidir para quais projetos ela dará aprovação, o comitê não tem a informação do quanto de retorno cada um dos projetos apresentados a ela dará de forma individual. O que se tem é: estimativas baseadas em projetos similares. Ou seja, o que a produtora sabe é que animes de um certo gênero, ou que apelam para um certo nicho, possuem um retorno médio de tanto.

O que significa que investidores não financiaram esses projetos de forma individual, mas em blocos de projetos com perfis similares. Dessa forma, mesmo que um anime tenha uma performance de vendas a baixo do esperado, aqueles que obtiverem maior sucesso compensarão pela falta de rendimento desses outros projetos.

Claro, nem toda a indústria segue esse modelo, normalmente essa lógica de produção está mais ligadas a projetos de baixo orçamento.

Uma Questão Cultural

Watashi no Oshi wa Akuyaku Reijou. é um anime em que a protagonista desperta dentro do mundo de seu jogo favorito e vai atrás do amor de sua personagem favorita, a vilã do jogo.

Animes são produzidos, em um primeiro momento, para o mercado japonês e, por vezes, exclusivamente para o mercado japonês. O que significa que, obviamente, a produção vai buscar o que agrada esse público.

E sabe uma coisa que o consumidor japonês, pelo menos o consumidor de anime, ama?

Clichés. Padrões. Formulas. Arquétipos. Tropes…

O japonês ama algo genérico, algo que ele pode colocar dentro de uma caixinha, dentro de uma definição, dentro de um molde.

Não é apenas o público japonês que gosta disso, claro, otakus fora do Japão têm apreço por esse tipo de coisa, e todo mundo gosta de um cliché. Caso contrário, nem clichés seriam.

Mas não consigo imaginar de outro lugar no mundo em que o termo Tsundere pudesse surgir (ainda que seja um termo dúbio), e todos os outros que viraram a partir dele (kuudere, dandere, yandere, himedere…), senão de dentro da própria comunidade otaku.

E o Isekai, principalmente as obras produzidas hoje em dia, tem muito disso. Ele é, em sua base, uma repetição, readaptação, releitura e ressignificação de tropes.

Além disso, esse ambiente de obras que compartilham de muitos elementos se torna um espaço rico para leituras em contraponto. Ou seja, a leitura de uma obra ser aprofundada a partir da comparação com outras obras.

Isso também se relaciona ao modo como os heróis são tratados dentro da produção japonesa. O Japão em especial tem bastante apreço por histórias que envolvem “o escolhido”, indivíduos cujo destino é tornar-se um grande salvador, aquele que vai libertar um povo, impedir a destruição do planeta, derrotar as forças do mal, enfrentar Deus e vencer. É um tipo de herói que é muito comum em jogos e que também vemos em isekais comumente, com humanos de nosso mundo sendo invocados ou levados a outro mundo com o pretexto de serem os únicos capazes de salvar esse outro mundo.

Mas existe uma outra característica dos heróis da produção japonesa que é possivelmente tão comum, senão mais comum, do que heróis eleitos pelo destino. Que é algo difícil de definir, porque é uma característica bastante abrangente, mas que podemos chamar aqui de herói “irregular”. Que são aqueles protagonistas que, por um ou outro motivo, estão fora do que é considerado padrão dentro do universo daquela obra, verdadeiras anomalias.

Alguns heróis irregulares são tratados como underdogs* dentro de suas próprias narrativas, não por serem de fato indivíduos mais fracos do que os demais, ou sem algum potencial real, mas pelo seu poder não ser devidamente medido. Isso pode se dar de diversas formas, como por exemplo no tipo de poder do protagonista ser considerado inferior dentro do que o sistema de poder daquele universo estabelece, ou pelo protagonista ter um poder latente desconhecido ou que ele ainda não é capaz de controlar, ou ainda que o protagonista simplesmente não aparenta ter o poder que tem ou não teve a oportunidade de mostrar o seu poder de forma pública e por isso não é reconhecido como alguém superpoderoso.

*Underdogs são aqueles protagonistas que são inicialmente mais fracos do que os seus pares, que rivalizam personagens muito mais poderosos do que eles, que começam atrás de todo mundo e que, por falta de talentos natos, precisam se esforçar muito mais até ficarem em pé de igualdade com o restante. É algo muito comum em shounens de batalha e é o tema principal de Ore wa Subete wo [Parry] Suru: Gyaku Kanchigai no Sekai Saikyou wa Boukensha ni Naritai, mas também está presente em isekais como Hazure Waku no [Joutai Ijou Skill] de Saikyou ni Natta Ore ga Subete wo Juurin Suru made, para citar animes dessa temporada.

O exemplo mais clássico disso é Saitama de One Punch Man, que dispensa maiores explicações, e o protagonista de Shinmai Ossan Bouken-sha, Saikyou Party ni Shinu Hodo Kitaerarete Muteki ni Naru também é um exemplo de como essa trope é aplicada.

Por outro lado, há heróis irregulares cujo poder foge de qualquer tipo de precedente, ou desafia a lógica e os paradigmas daquele mundo. Como o protagonista de Infinite Stratos (ainda que seja apenas um pretexto para o harém do protagonista) por ele ser o único homem capaz de pilotar as máquinas de combate daquele mundo de fantasia.

O protagonista de Kage no Jitsuryokusha ni Naritakute!, Cid, por ele esconder o seu poder de todo mundo e agir como se fosse um underdog comum, acaba se tornando um exemplo desses dois lados de um herói irregular, pois, devido ao seu conhecimento da ciência moderna aplicado à magia daquele mundo e aliado à sua obsessão em se tornar uma espécie de vigilante noturno, ele desenvolve os seus poderes ao ponto de verdadeiramente revolucionar a magia.

Dessa forma, fica fácil perceber que a proposta do isekai facilita o autor desenvolvimento qualquer uma dessas três características de herói —escolhido, irregular ou underdog — , afinal, nada mais fora do padrão do que alguém que literalmente veio de um outro mundo, e não é difícil imaginar o quão mais fraco em comparação a todo mundo alguém do nosso mundo seria em um mundo de fantasia em que todos os indivíduos possuem algum tipo de habilidade fantástica sem, é claro, que ele recebesse novos poderes.

Produção Amadora e em Bolha

Em Slime Taoshite 300-nen, Shiranai Uchi ni Level MAX ni Nattemashita, após morrer de tanto trabalhar, a protagonista reencarna como uma bruxa em outro mundo, no qual passa 300 de sua nova longa vida derrotando slimes todos os dias até ficar imbatível.

A grande maioria de todos os animes produzidos hoje em dia são adaptações (pra não dizer últimas décadas). Até o começo dos anos 2000s a principal fonte dessas adaptações era sem dúvida os mangás, com videogames e Visual Novels vindo atrás. Mas de lá para cá mais e mais dessas adaptações passaram a ter as Light Novels como fonte.

Isso significa que a indústria de animes, por ser pautada por adaptações, reflete o conteúdo presente nos mercados dos quais essas adaptações se originam.

E— por mais que seja verdade que, sendo bem direto aqui, tenha muito isekai sendo produzido na indústria de animes — onde realmente pode se dizer que houve uma febre de isekais é no mercado de Light Novels. O tema se tornou tão saturado que um concurso de histórias curtas teve que banir a inscrição de obras que fizessem qualquer menção as palavras “isekai” e “tensei”* da competição.

*o conceito de tensei será explorado mais para frente no texto.

Porém, apenas dizer que isekais são tão presentes em animes hoje porque a indústria de animes é, em parte, reflexo do que é produzido no mercado de Light Novels é apenas transferir o foco da questão da indústria de animes para o mercado de Light Novels, não é de fato uma resposta.

Contudo, podemos sim apontar ao menos um motivo para o tema ter se tornado tão popular dentro do mercado de Light Novels. Que é o fato de muitos dos autores desse selo literário iniciaram suas carreiras em sites que permitem a autopublicação de forma completamente amadora e independente*, para só depois que suas obras tenham se tornado populares dentro desses sites (ou de chamarem a atenção de uma editora) é que recebessem publicações em mídia física de forma oficial.

*O site mais relevante nesse ponto é o Shousetsuka ni Narou (小説家になろう, que significa algo como “se torne um escritor”).

Justamente por isso, algumas das obras adaptadas para animes possuem duas versões em texto, a primeira publicada online e a segunda impressa. Autores costumam reescrever suas histórias justamente pensando em quem acompanha as versões online, para que possam ler algo ligeiramente novo. Como é o caso de Overlord, em que o autor adicionou, entre muitas coisas, a personagem Albedo na história impressa. E sim, eu tenho texto só para falar o que o autor queria com a adição dessa personagem.

Mas o que realmente importa aqui é que esse modelo de publicação centralizado em uma só plataforma online, que permite aos usuários tanto ler as publicações de outros autores como criar as suas próprias — principalmente sendo tudo gratuito — , acaba criando bolhas de criadores que vão influenciar um aos outros.

Esse fenômeno acontece de forma constante em diversos espaços na internet, em que os criadores de dada plataforma também consome o conteúdo que circula dentro dela e acabam replicando muito daquilo que consomem. Seja pelo conteúdo que circula na plataforma despertar interesse em dado criador, ou por ele procurar produzir o formato de conteúdo, ou mesmo as linguagens, que mais produz engajamento naquela plataforma.

É novamente aquilo que vimos quando falamos em vício de mercado, mas aplicado em um espaço muito mais nichado e sem as entreves clássicas de um mercado tradicional, que colocam uma maior limitação no que é efetivamente publicado.

Exemplos desse efeito não faltam no próprio YouTube, como os vídeos de reacts, alguns formatos bem específicos de thumbnail ou mesmo a explosão ainda relativamente recente das Vtubers (possibilitada principalmente pelo aumento da acessibilidade às ferramentas necessárias para se criar um canal de Vtuber) tem tudo haver com essa dinâmica das redes.

A Culpa é Sempre dos Videogames

Em Isekai Maou to Shoukan Shoujo no Dorei Majutsu, Takuma Sakamoto é invocado para o outro mundo no corpo de Diablo, um personagem que ele criou em um videogame.

Outro ponto está relacionado com a influência dos jogos eletrônicos na mídia como um todo, principalmente jogos de RPG, e na inclusão desses jogos tanto no imaginário popular como no cotidiano da vida das pessoas.

Antigamente as máquinas de arcade eram a principal forma como o videogame era consumido. Jogos eram inicialmente desenvolvidos para serem jogados nessas máquinas, e só mais tarde é que recebiam versões para os consoles domésticos. Isso significava que esses jogos eram feitos pensando que o jogador estaria em uma máquina de arcade, ou seja, que ele estaria jogando utilizando fichas, teria um tempo limitado com aquela máquina, a estaria disputando com outras pessoas, e que ele não era dono do jogo e nem da máquina.

A relação do jogador com os jogos era basicamente efêmera no sentido de que o jogador não carregava nenhum tipo de progressão interna no jogo de uma ida ao arcade a outra. O único tipo de progresso que o jogador poderia ter estava relacionado com as suas próprias habilidades e o seu conhecimento do jogo, dos tipos dos inimigos, dos desafios de cada fase e por ai em diante.

Por conta disso, a filosofia de design por trás desses jogos era de construir um desafio potencialmente infinito que teste e recompense constantemente as habilidades do jogador, que o puna o jogador por cada um dos seus erros e que acabe com a jogatina o mais rápido possível de uma forma que seja justa. De forma que o jogador estivesse inclinado a sempre voltar ao arcade e tentar novamente, ir mais longe, superar o seu recorde pessoal e o do local. Já que o modo como os jogos são vendidos em um arcade é através do uso da máquina.

Com a mudança do foco do desenvolvimentos dos jogos para os consoles domésticos e aparelhos pessoais, e com os jogadores se tornando donos de seus próprios jogos, a dinâmica da indústria passou a favorecer obras com outras lógicas de design, com uma progressão interna permanente, com jogatinas que pudessem ser fracionadas e estendidas indefinidamente*, que tivessem um final bem definido** e cujo apelo não estivesse meramente em um desafio mecânico baseado na habilidade do jogador.

*O que só é possível com um sistema de save., algo que é no mínimo incomum e contra intuitivo em arcades.

**Afinal, agora o que é mercandilizado não é o tempo gasto com cada jogo, mas cada jogo em si, o que significa que agora é interessante para o mercado que o jogador vá sempre atrás de jogos novos em vez de ficar rejogando sempre o mesmo jogo… Claro, essa lógica muda quando estamos falando de jogos como serviço, que seguem uma lógica própria, que tem algumas similaridade com a lógica dos arcades.

Isso permitiu que jogos com foco em narrativa pudessem fazer sucesso nesse mercado, já que o jogador agora pode acompanhar essas narrativas do começo ao fim em seu próprio ritmo. Ao mesmo tempo, como a rejogabilidade deixou de ter tanta importância para a indústria, desafios de puzzle se tornaram mais viáveis, uma vez que eles são desafios que se tornam menos interessantes depois que são resolvidos.

Também é a partir desse novo conjunto de paradigmas que os jogos de RPG, ou com elementos de RPG, passam a ser mais e mais presentes dentro da indústria (pois o centro das mecânicas de RPG é uma progressão linear da força e das habilidades do personagem do jogador), ganhem apresso pelo público e entrem no imaginário popular. A partir disso, acaba sendo natural que esses jogos façam parte do referencial cultural dos criadores e roteiristas de mangás, Light Novels e dos próprios animes.

Ou seja, a presença de elementos que simulam ou que fazem referência a mecânicas de RPGs em histórias de outras mídias, como é o caso de animes, principalmente isekais, acaba sendo reflexo direto da popularidade desses jogos, é até mesmo um efeito colateral do impacto que as narrativas de jogos de RPG em escritores, principalmente os escritores japonês.

E jogos de RPG não são os primeiros a serem emulados em histórias de anime dessa forma, a sua origem, os RPGs de mesa como um todo, mas em especial Dungeons & Dragons, também são importados para o mundos dos animes da mesma forma, basta lembra dos dois primeiros animes citados nesse texto (mas também podemos citar Lodoss-tou Senki, Slayers e Berserk), o que também é um reflexo da popularidade do D&D no Japão, principalmente no meio otaku.

Em primeira instância, isso não explica diretamente o isekai em si, apenas a gameficação e a presença de elementos desses jogos em séries de fantasia como um todo. Porém, se pensarmos na principal diferença entre jogar um videogame e um RPG de mesa podemos imaginar como essa popularização dos jogos pode ter influenciado no surgimento do isekai moderno.

Quando falamos em RPGs de mesa, o que temos que ter em mente é que a principal ação que define a forma como esse tipo de RPG é jogado é o ato de se interpretar um personagem. Daqui que vem o próprio nome da coisa, Role-Playing Game. O jogo em si é uma construção narrativa que se dá entre todos os jogadores, incluindo o próprio mestre, enquanto o conjunto de regras do D&D, além de poderem ser flexibilizadas e negociadas pelos próprios jogadores, é apenas um intermediário para as interações entre os jogadores, muitas delas fruto de improviso.

Já quando falamos dos jogos de RPG eletrônico, o centro do ato de jogar é a própria interação do jogador (ou dos jogadores) com aquele sistema eletrônico. Não há uma construção narrativa propriamente dita por parte do jogador, a estrutura narrativa do jogo já está dada, o jogador apenas navega por ela. O personagem do jogador não é muito mais do que um avatar que permite ao jogador interagir com aquele mundo. O jogador pode sim improvisar para resolver os problemas mecânicos impostos pelo jogo, mas nunca as questões da história do jogo, essas sempre terão soluções limitadas e delimitadas.

Ou seja, o jogador de um RPG eletrônico é visto como algo apartado do mundo do jogo, enquanto o mesmo não acontece com o RPG de mesa, em que o próprio jogador, através do seu personagem, faz parte da criação daquele mundo.

Dessa forma, conceitualmente falando, a ideia do isekai acaba sendo mais intuitiva quando a maior referência para mundos de fantasia são os jogos eletrônicos de RPG. O que não significa que ela não pode surgir de outra maneira, com outras referência, pois é possível extrair o conceito de mundos paralelos e mundos ocultos desde quando se fala do inferno.

Solução de um Problema Narrativo

Arte oficial de Honzuki no Gekokujou, por Midori Foo.

Esse tópico é assunto em outro texto meu; Construindo Mundos com o Isekai do Livro, mas resumindo: Obras de fantasia possuem o grande desafio de apresentar um mundo completamente novo para seu telespectador, e como fazer isso sem que essa apresentação pareça monótona e não natural?

Obviamente, há várias formas de fazer isso mas uma delas é justamente tendo como protagonista um personagem que sabe tanto daquele mundo quanto o próprio leitor (leia-se nada). Dai que a ideia do isekai, de trazer um personagem do nosso mundo para um outro mundo fantástico, se torna algo conveniente no ponto de vista narrativo.

Uma Ideia com Múltiplas Possibilidades

Estreando nessa temporada, Isekai Suicide Squad é mais um exemplo do que é tratado nesse tópico.

Lembra quando eu falei sobre o ponto de saturação de isekai ser alto porque há isekai de tudo quanto é tipo? Então. Um dos motivos desse conceito ter se tornado tão popular é o quão maleável ele é.

Como não se trata de um gênero propriamente dito, como não é nenhuma regra dizendo para qual direção obras de isekai devem seguir, nem quais temas o autor deve explorar, é algo tratado apenas como uma premissa, um ponto inicial da história*, o autor de uma história de isekai tem a liberdade para levar a sua obra para a direção que ele bem entender.

*justamente por se tratar apenas de um ponto de partida é que há inclusive obras em que é fácil esquecer que são isekais, como Saihate no Paladin.

E isso acaba sendo importante porque permite a esses autores fazer algo que soa contraditório, mas que faz total sentido, que é, ao mesmo tempo, fazer algo que todo mundo está fazendo, seguir uma tendência, e fazer algo completamente novo, diferente de todo mundo.

É em parte do que eu falei em Elementos Parodiais em Isekai, é essa brincadeira de pegar estruturas presentes em outras histórias e readaptá-las, satirizá-las, criar sentidos novos para elementos já batidos. Exemplo disso é o hilário e subversivo Isekai Oji-san. Mas não é só isso.

O conceito de isekai também é um prato cheio para “e se”s. Por exemplo, e se o protagonista fosse um assassino profissional, um faz tudo, ou alguém obcecado em se tornar um vigilante noturno, um herói das sombras? E se o protagonista reencarnasse como uma aranha, ou como uma máquina de vendas, uma espada mágica?, um porco!? E se o protagonista for invocado por engano ao outro mundo apenas por estar junto dos verdadeiros heróis?

Isso pensando apenas no protagonista dessas histórias, em quem ele é, em que condições ele vai para aquele mundo ou quais são as condições dele dentro desse próprio mundo, porque também temos que nos lembrar que isekais são se limitam a apenas um mundo de fantasia. Ainda que quando pensamos em mundos de isekais normalmente pensamos em um mundo medieval, com magia, algum sistema de guildas e uma série de elementos que lembram mundos de RPGs eletrônicos — e de fato, obras com mundos com essas características são a maioria — , mas não há nada que de fato limite ou obriguem os autores a pensarem em mundos de fantasia com essas características em específico, e mesmo dentro desses arquétipos ainda há muito espaço para criatividade e imaginação.

Enfim, essa multiplicidade de possibilidades que o conceito trás — de quem está indo pro isekai, como ele vai para o isekai, como ele para lá, se é reencarnado, ressuscitando ou transportado, se ele ganha algum tipo de poder, que tipo de mundo ele encontra — ao mesmo tempo cria um ponto de partida bem específico para um exercício criativo e só é limitado pela própria criatividade de quem o faz.

Adeus Mundo Cruel

Truck-kun, o MPV das histórias de isekai, levando a protagonista de Watashi, Nouryoku wa Heikinchi de tte Itta yo ne! direto para o outro mundo.

Mas, se o conceito de isekai não é necessariamente algo novo, por que exatamente essas levas mais modernas de animes contendo o tema são tratadas como se fossem algo inédito?

A questão é que sim, há algo de novo no que podemos chamar de isekai moderno que se difere dos isekais clássicos, por assim dizer. Enquanto nos isekais clássicos a ida ao isekai, em maioria, era tradada como uma questão temporária (ou possivelmente temporária) e ligada a um propósito, nos isekais modernos a ida ao outro mundo é tradada como algo definitivo, ou pelo menos a volta ao mundo de origem é improvável ou até nem mesmo quista pelo protagonista, e muitas vezes acontece de forma acidental ou aleatória.

Enquanto nos isekais clássicos voltar para o mundo de origem é ou a principal ou a inicial motivação do(s) protagonista(s), nos isekais modernos a força que move esses personagens é o de construir uma nova vida naquele mundo e a partir do quê os personagens encontram nesse novo mundo é que eles vão estabelecendo novos objetivos.

Daqui que o tema de “vivendo uma nova vida em um outro mundo” acaba sendo muito recorrente, para não dizer uma regra, nos isekais modernos (exceções existem, claro, como é o caso de Tate no Yuusha no Nariagari em que, mesmo sendo um isekai atual, o protagonista não parece desejar continuar naquele mundo). Não atoa que muitos isekais também acabam abordando outro conceito também bastante recorrente na mídia hoje em dia, os Tensei.

転生, tensei ou tenshou, significa literalmente reencarnar, ou seja, morrer e renascer em um novo corpo, ganhar uma nova vida. Nem todo isekai será um tensei, exemplos de isekais em que os protagonistas são transportados para um outro mundo com o corpo que tinham não faltam, inclusive acabei de citar um.

Da mesma forma, um tensei não precisa ser um isekai. Há tenseis que se passam no mesmo mundo que o nosso, exemplo recente é Oshi no Ko, ou que o protagonista já vivia naquele mundo de fantasia antes de renascer, como é o caso de Tensei Shitara Dai Nana Ouji Dattanode, Kimamani Majutsu wo Kiwamemasu.

De qualquer forma, seja Isekai, seja Tensei, ou seja ambos, o tema de viver uma nova vida acaba sendo marcante na grande maioria dessas obras. Mas não é só isso. Não é apenas viver uma nova vida, os protagonistas dessas obras ainda possuem algum tipo de vantagem, algo que os coloca em destaque em relação ao restante dos personagens.

Em boa parte dos casos, essa vantagem é justamente a mais obvia, se essa é a segunda vida do protagonista é porque ele teve uma vida anterior e, sendo assim, ele carrega consigo uma série de aprendizados que lhe são uteis em sua nova vida. Em certos casos, nem é uma questão do protagonista ter algum conhecimento específico que ele pode utilizar em sua nova vida, mas o simples fato dele ter uma forma de pensar diferente do restante oportuniza o protagonista ir além, aprender e descobrir coisas que cidadãos comuns daquele mundo não descobririam.

Na outra grande parte dos casos, essa vantagem se dá de uma forma muito mais explícita. Por vezes é concedido ao protagonista uma habilidade especial, ou simplesmente o protagonista é mais poderoso e ponto.

Isso sem mencionar a vantagem óbvia de ser um adulto reencarnado em um corpo de um bebê quando se trata de obras Tensei.

E isso nos mostra o quê exatamente? Posso apontar duas coisas aqui.

A primeira delas é a de que isso pode indicar que há uma insatisfação ou pelo menos uma falta de interesse no mundo atual.

De certo modo, o gênero de fantasia como um todo se baseia em imaginar uma realidade que não a nossa. Ele é um espaço natural para o escapismo. Um instrumento para que tanto o autor como telespectador fiquem imersos em um lugar que não tem conexão com a realidade. Se o dia-a-dia é chato, o trabalho é maçante, as relações são superficiais ou meras obrigações sociais, a ficção está ai para tapar o buraco. E tematicamente isso acaba sendo muito forte nos isekais.

Ao mesmo tempo — segundo ponto aqui —, esse empoderamento de personagens que a princípio são absolutamente normais, comuns, ou até flagelos de suas sociedades originais e marginalizados nelas, pode significar que há um sentimento de impotência dentre o público que consome essas obras, para se identificar com elas, ou/e que os autores projetam seus desejos e suas frustrações dentro de suas obras, ainda que de forma inconsciente.

Esse tipo de projeção também é algo que pode ser extraído de outro tema de fantasia, o da Regressão, que consiste em personagens voltarem para uma época anterior de sua vida para realizarem algo durante esse período, geralmente utilizando os seus conhecimentos daquela época para evitar que algo de ruim aconteça (ex: Erase); rever suas decisões do passado, seguir outro caminho de vida e desfazer algum tipo de frustação em sua vida pessoal (ex: Bokutachi no Remake).

Ainda, essas histórias de regressão também não necessariamente precisam envolver viagem no tempo, mas também pode ser como é em ReLIFE, no qual o protagonista volta aos dias de escola, mas por outro meio.

A ideia aqui é a de trabalhar com uma série de sentimentos, creio eu, relativamente comuns, como a nostalgia de uma época que não volta mais, um arrependimento de ter tomado essa ou aquela decisão, ou de algo ainda mais drástico: o pensamento de que a sua vida poderia estar em uma situação melhor se tivesse feito algo diferente, se tivesse tomado antes algum tipo de decisão ou levado a sua vida para um outro caminho.

Outro exemplo de história de regressão é Loop 7-kaime no Akuyaku Reijou wa, Moto Tekikoku de Jiyuu Kimama na Hanayome Seikatsu wo Mankitsu Suru em que Rishe, pela sexta vez, volta 5 anos no passado e acaba se envolvendo com um príncipe herdeiro de um reino estrangeiro, o mesmo homem que é direta e indiretamente responsável pela morte dela em todas as linhas temporais passadas.

Aqui há muito forte a ideia de que o indivíduo é senhor do próprio destino, são as pequenas e grandes escolhas que ele faz durante a sua trajetória que ditam o seu fim. Há sempre uma responsabilização do eu por tudo aquilo que acontece na vida dele. Foi porque ele foi imaturo demais, afobado demais, irresponsável demais, lhe faltava experiência, lhe faltava conhecimento…

Em isekais/tensei essa ideia também está presente, mas de forma ainda mais drástica. Cá, a ideia é a de que existem pessoas que tomaram tantas decisões erradas em suas vidas que apenas recomeçar a vida por completo do zero resolveria a situação delas. Dai que o indivíduo precisa ir para um mundo completamente diferente ou nascer de novo. Ao mesmo tempo, perde-se a ideia de que o passado desse indivíduo é um local digno de ser revisitado.

E nesse ponto não é nenhuma surpresa que a figura do hikikomori*, com relevante frequência, acaba protagonizando deste tipo de história. Porque eles são, dentro do imaginário popular, a representação de alguém que fracassou, não se adaptou a sociedade ou foi excluído dela, não conseguiu atingir as expectativas impostas pela família, pela escola, pelo trabalho, ou tornou-se vítima de abuso ou bullying e, não encontrando quem lhe desse apoio, encontrou a única forma de escapar dessa violência no isolamento social.

*A definição de Hikikomori adotada pelo Ministério de Saúde, Trabalho e Bem-estar do Japão é de alguém que está trancado no próprio quarto a mais de seis meses consecutivos. Mas para efeitos práticos também podemos incluir pessoas em situação similar, como os NEETs (not in education, employment, or training, também chamados de nem-nem — nem trabalhando, nem estudando) com qualquer grau de reclusão.

Por conta disso, é importante entender o isekai moderno como um momento de transformação do indivíduo, como uma reviravolta completa na vida dessa pessoa, como recomeço e superação de si mesmo, e a oportunidade para que o indivíduo desenvolva todo o seu potencial. Mas não dá para fechar olhos para o que o isekai é em sua leitura mais óbvia e literal. Não para para ignorar o fato de que o isekai moderno, do jeito que está posto para nós, é uma fuga do mundo atual.

Isekai é a manifestação do desejo de viver em um mundo de fantasia. Mas não de forma literal. Não estamos falando aqui que há um desejo de literalmente morrer e reviver em um mundo de fantasia, ou de ser levado fisicamente para um isekai. Mas que aquilo que dá prazer na vida dessas pessoas, aquilo que dá sentido para a vida é a literatura, é o isekai, a ficção, são os mundos de fantasia. Viver aqui é no sentido de imergir*, de vivenciar esses mundos de fantasia ainda como obras de arte.

*para entender melhor o meu entendimento do conceito: Essa tal de imersão.

Nesse sentido, o fenômeno do isekai moderno é uma extensão ou até mesmo um sintoma do fenômeno do hikikomori. E temos que entender que esse fenômeno dos hikikomoris não diz respeito a apenas as pessoas que estão de fato em isolamento, que estão tão afastadas de tudo e que ficam sozinhas em seus quartos, mas que esse fenômeno diz respeito a todas as pressões sociais que levam a esse isolamento extremo, e que por isso afetam a todas as pessoas impactadas por essas questões sociais.

Portanto, ainda que o indivíduo tenha uma vida para além das obras de entretenimento, para além desse consumo de mundos de fantasia, um trabalho, um estudo, uma família, onde ele fato vive e não só sobrevive é no contato com esses mundos fantásticos.

Esse isolamento social, que vai muito além do isolamento físico e acaba se tornando um isolamento muito mais afetivo e psicológico, assim como esse sentimento de impotência e de falha (que dão luz a um desejo por uma segunda chance) têm raízes em um mesmo ponto, a sociedade capitalista extremamente competitiva e individualista da sociedade japonesa atual, que adoece o indivíduo, o despolitiza, o reduz a um mero consumidor, o atomiza e, cada vez mais, poda os seus direitos, ao mesmo tempo que coloca no indivíduo a culpa de problemas que são da própria estrutura social que, por sua vez, segundo a ideologia dominante é algo dado como natural, imutável e objetivamente boa.

Não é o foco do texto, porém, fazer uma analise profunda da sociedade japonesa, e seria uma prepotência da minha parte dizer que tenho o conhecimento necessário para tal. Afinal, a sociedade japonesa, como toda a sociedade capitalista, é bastante complexa e entendê-la por completo necessitaria um vasto conhecimento a respeito da sua cultura, da sua religião e história política.

E ainda que fosse importante compreender o fenômeno hikikomori com um todo, e os fatores sociais que tornam os indivíduos da sociedade japonesa mais propensos a desenvolver a síndrome (que não é uma exclusividade cultural japonesa, mas um fenômeno observado em todo o mundo, inclusive aqui no Brasil), o que envolve o próprio bullying como um fenômeno social, mesmo os pesquisadores da área ainda não compreendem inteiramente a síndrome, e a falta de um diagnóstico psiquiátrico próprio dificulta não apenas uma padronização do atendimento aos indivíduos que sofrem com esse isolamento, mas as próprias pesquisas sobre o assunto.

̶F̶r̶e̶u̶d̶ Darwin Explica

Se você gosta de personagens apelões, tá ai Sokushi Cheat ga Saikyou Sugite, Isekai no Yatsura ga Marude Aite ni Naranai n desu ga., nada fica mais apelão que isso.

Isso posto. Há uma ultima explicação, muito mais simples (e como dizem, a explicação mais simples é geralmente a mais correta), para o porquê dessa diferença entre o isekai clássico e o moderno, do motivo pelo qual a ida ao isekai será tradada, logo de início, como algo sem volta. Que é, basicamente, que isso é uma evolução natural do conceito.

Pois bastou alguém pensar, e aqui voltamos aos “e se”s, na possibilidade do protagonista não querer, desde o começo, voltar ao seu mundo de origem, ou dele entender, por qualquer motivo que seja, que aquela ida ao outro mundo não tem reversão, ou ainda que em vez dele ser invocado para aquele mundo com um propósito, por alguém que lhe dá uma missão clara e objetiva, ele simplesmente fosse jogado em outro mundo, sem qualquer propósito ou razão, por, que seja, mero capricho divino, tendo que sobreviver do jeito que for, para que a ideia circulasse por ai e cativasse o interesse das pessoas.

Nessa perspectiva, o que se tem aqui é, bem verdade, um reflexo de indivíduos que, através da literatura, do cinema, dos videogames, dos animes,, da arte como um todo, cresceram rodeados de obras contendo mundos de fantasia, que são muito familiarizado com elas. E que, a partir dessa familiaridade, passam a imaginar, se questionar, especular em como seria de fato viver nesses mundos de fantasia, não como algo passageiro mas como algo definitivo.

Ou seja, era só uma questão de tempo até que essa ideia surgisse.

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Marcelo Hagemann Dos Santos
Marcelo Hagemann Dos Santos

Written by Marcelo Hagemann Dos Santos

Rapaz de humor duvidoso que entrou essa de escrever sobre animes recentemente. Ex-aluno de filosofia e graduado em Letras, mas sempre estudando.

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