De Kemono Friends à Kemurikusa
Quando publiquei meu primeiro texto aqui no medium a respeito da vida e morte do pinguim que havia se apaixonado por uma gravura de uma das personagens de Kemono Frends, Grape-kun, em 18 de outubro de 2017, a situação já não parecia muito boa para franquia. Uma vez que, no mês anterior, fãs haviam recebido a notícia de que Tatsuki e o estúdio Yaoyorozu, responsáveis pela criação da primeira temporada de Kemono Friends, não participariam da produção da segunda temporada, algo que não agradara ninguém na época, para dizer um mínimo.
Agora, passado dois anos do lançamento da primeira temporada, percebemos que o interesse pela franquia diminuiu consideravelmente se compararmos a quantidade de engajamento provocado aos fãs pela primeira e segunda temporada da série. O que já era de se esperar, uma vez que, com a demissão de Tatsuki, muitos fãs haviam declarado boicote à segunda temporada, e pelo fato de que Kemono Friends 2 disputou a atenção do público com títulos de peso como a segunda temporada de Mod Psycho, Tensei shitara Slime Datta Ken ou mesmo Dororo para citar o que lançava na segunda por aqui nessa primeira temporada de 2019.
Mas é claro, apenas a presença de outros títulos fortes na temporada não é o suficiente para explicar a falta de engajamento dos fãs, ainda mais considerando que Kemono Friends não é uma franquia limitada apenas a sua animação, e seria natural que uma parte dos interessados pela franquia iriam assistir essa nova animação independente da polêmica envolvendo a saída de Tatsuki desse projeto. Sendo assim, se essa nova animação fosse tão interessante quanto a antiga ela causaria uma nova onda de engajamento por quem decidiu acompanhar esse projeto… Afinal, seria estranho assumir que Tatsuki fosse o único diretor capaz de fazer aquilo que fora realizado na primeira temporada, ou que ninguém fosse capaz de replicar o seu trabalho de uma forma ou de outra.
Porém não foi isso o que aconteceu. Não posso dizer se a intenção por trás da segunda temporada era replicar o que fora feito na primeira temporada, ou distanciá-la dela o máximo possível, mas o que posso afirmar é que o resultado final foi algo muito diferente daquilo que tivemos há dois anos.
A princípio a segunda temporada é bastante parecida com a primeira. Em vez de Kaban, temos Kyururu aparecendo de maneira misteriosa na savana, que por sua vez procura pelo próprio habite, ou mais especificamente a sua casa. Diferente de Kaban, que não sabia que era humana no começo de sua jornada de auto-descobrimento.
Além disso, a estrutura da série é parecida com a da primeira, em que o grupo de protagonistas viaja pelas diversas áreas do parque encontrando-se com diversos Friends no meio da sua jornada, interagindo com eles e trazendo soluções alternativas para os seus problemas.
Entretanto, essas duas características e o fato de ambas as séries usarem modelos em 3d para animarem seus personagens são todas as semelhanças que posso listar entre as duas temporadas.
A primeira grande diferença entre as duas temporadas está em suas personagens humanas; Kaban e Kyururu. Apesar de ambas motivarem a jornada pelo parque, Kaban tem um papel muito mais ativo em sua jornada do que Kyururu, que em comparação com a primeira protagonista da série parece mais uma passageira do que alguém que trilha o próprio caminho.
Por um lado, Kyururu resolve os obstáculos impostos pela trama com sua capacidade de criar, inventar ou sugerir atividades lúdicas, passatempos e brincadeiras para os Friends com quem interage pela trama.
Por outro, Kaban utiliza-se da lógica, criatividade, capacidade de ler e interpretar símbolos e estimula o trabalho em conjunto com outros Friends para resolver e superar os diversos desafios encontrados em sua jornada. Criando soluções criativas para tais obstáculos, explorando as capacidades e forças dos Friends com quem encontra e impactado de maneira positiva muitos dos habitantes do parque, ao ponto de seu nome se tornar sinônimo de alguém altruísta e extremamente capaz aos ouvidos de quem escuta seus feitos.
Kaban cresce consideravelmente durante sua estadia no parque, tornando-se uma humana corajosa, ciente das próprias capacidades e independente. Enquanto Kyururu permanece praticamente a mesma do início ao fim, apenas reconhecendo que seu lar é onde ela decidir que seja.
Ao mesmo tempo, Kyururu é acompanhada tanto por Serval como por Caracal que por si só são uma dupla interessante. Serval é sempre bastante honesta, com pouco a esconder e pensa muito pouco antes de agir. Enquanto Caracal é mais calma, pensa antes de agir, e é menos sincera com seus sentimentos… Bom, ela é uma tsundere. E a princípio isso pode soar como uma vantagem em relação a temporada anterior, já que a única Friend que acompanha Kaban é a Serval. Mas é justamente nesse ponto que certos elementos da primeira temporada ficam evidentes.
Serval pode ser a única Friend a acompanhar Kaban, mas nem de longe ela é sua única companhia. Desde o segundo episódio as duas viajam junto de Boss, um Lucky Beast que serve tanto como guia turístico para os visitantes do parque como é a maior fonte de informações a respeito dos animais em que os Friends em cena são originados, e contribuiu na jornada indicando os locais para quais as duas devem seguir, além de guiá-las pelos caminhos do parque, dirigindo o ônibus que elas usam para cruzar o parque.
Em contrapartida, as Lucky Beasts da segunda temporada acabam não tendo tanto destaque, e são apenas guias temporários para trio em momentos específicos da trama, e não têm esse papel de trazer informações do mundo real para a narrativa como faz o Boss, servindo mais como alívio cômico do que qualquer outra coisa.
Além disso, o próprio ônibus restaurado nos primeiros episódios pode ser considerado como um dos personagens que acompanha Kaban durante a sua aventura. Já que, diferente da segunda temporada em que as personagens estão constantemente utilizando meios de transportes diferentes para se locomover pelo parque, o ônibus é o principal meio de transporte para as duas, e um verdadeiro ícone para o parque.
Esses dois elementos acabam sendo essenciais na primeira temporada para construir essa atmosfera de safari, que é um dos charmes que atraiu muita gente em 2017, e acabou sendo pouco presente na série de 2019.
Um charme que é reforçado nos espaços de intervalo comercial de cada episódio, em que os animais são reapresentados ao público na fala de alguém da área, seja um pesquisador, biólogo, ou funcionário de um zoológico. Algo que faz falta na segunda temporada, pois esses segmentos não foram licenciados no ocidente por conterem imagens extraídas do National Geographic, o que realmente é uma pena porque não só esses trechos são importantes para legitimar as falas do Boss no decorrer dos episódios e contribuem para criar esse clima documentário que a série possui, como é dito que houve uma mudança no modo como essas apresentações são feitas, em vez de serem pessoas da área falando sobre esses animais são as próprias dubladoras, atuando em seus devidos personagens, realizando o papel que antes era do especialista. O que infelizmente nem tenho como dizer se foi uma mudança positiva ou negativa, ou apenas uma mudança, porque mesmo em meios alternativos de se consumir a série eles não estão presentes, o que torna esse mais um exemplo de como esse modelo de licenciatura tem mais prejudicado do que ajudado certos títulos a se tornarem populares por aqui.
Ainda, Boss também serve como uma conexão com o passado do parque ao eventualmente exibir gravações de Mirai antes do Japari Park ser evacuado por conta do Ceruleans Negro, que por sua vez é enfrentado no final da primeira temporada. Outro elemento que acabou sendo deixado de lado na segunda temporada.
E por falar nos Ceruleans, esses são bem menos ameaçadores na segunda temporada em comparação com a primeira. Em 2017 quando o grupo encontrava um Cerulean a melhor resposta geralmente era a fuga, em apenas alguns casos Kaban e Serval precisavam enfrentá-los e, ainda assim, nunca eram inimigos que poderiam ser derrotados com muita facilidade. Já na animação de 2019 os Ceruleans são raramente uma ameaça, sendo facilmente derrotados pelos Friends sem a necessidade de nenhuma estratégia ou tática. O que acaba tirando a tensão e um pouco razão de sua presença.
Outro elemento que é evidente na primeira temporada e que não está em tanta força na segunda é o próprio parque. Na primeira temporada, Kaban e Serval cruzam com bem mais Friends do que elas realmente interagem por episódio, e isso por si só faz com que o parque tenha bem mais vida do que na segunda temporada. E ao mesmo tempo, a dupla encontra várias atrações abandonadas, e completamente fora de funcionamento no meio de sua viagem, algo que acaba criando esse cenário pós-apocalíptico pelo qual a primeira temporada acabou se tornando conhecida, e que, novamente, não está muito presente no projeto de 2019.
Todos esses elementos são muito bem trabalhados e amarrados na primeira temporada de Kemono Friends, e por conta desse trabalho a animação de 2017 acabou se tornando uma das narrativas mais impactantes que tivemos nos últimos em termos de anime. Enquanto o mesmo não pode ser dito da animação de 2019.
É claro, isso não quer dizer que a segunda temporada de Kemono Friends seja necessariamente ruim, ou que ela não tenha os seus pontos fortes. Por exemplo, há a introdução do conceito de bestas, que são como Friends normais mas que possuem um comportamento agressivo e selvagem, atacando tanto Cerulians como outros Friends.
Além disso, a presença da Ave-do-Paraíso (Parotia sefilata) e da Soberba ave-do-paraíso na série é um elemento interessante, pois elas atuam como uma espécie de agente do caos, por vezes confundindo Kyururu, fazendo-a questionar suas próprias decisões, apenas para guiá-la novamente para o caminho correto.
Por fim, há algumas decisões questionáveis e neutras na segunda temporada. Como a diferenciação da Sandstar para o material que forma os Cerulians. O próprio fato dos Cerulians assumirem a forma de objetos criados pelos humanos é algo um pouco estranho. O fato dos Japari Buns não serem mais uma única forma de ração dos Friends, e assumirem formas de outros doces japoneses, como o pocky. E a própria presença da Kaban, que eu poderia resumir como um grande potencial desperdiçado.
Mas é claro, esse texto não se trata apenas das diferenças entre a segunda e a primeira temporada de Kemono Friends, ou mesmo o impacto causado pela mudança de direção do projeto, apesar de em 2017 ter nascido em mim um grande carinho pela franquia que apesar dos pesares se mantêm até hoje. Mas sim sobre o homem que plantou essa semente em mim: Tatsuki.
Para ser bastante sincero, não conheci o trabalho de Tatsuki em Kemono Friends especificamente, mas sim em um título bem menos conhecido e que deveria ser melhor apreciado dentro da comunidade de animes: Tesagure! Bukatsumono, dirigido por Koutarou Ishidate (também responsável pelo peculiar Himote House), no qual Tatsuki atuou como diretor de animação.
Tesagure! Bukatsumono é um projeto bastante interessante porque não há nenhuma surpresa no fato dele não ser um título popular, seja no Japão ou no ocidente, afinal ele pode ser descrito como a reunião de tudo aquilo que se tem de menos popular na animação japonesa.
Não é apenas inteiramente animado em CGi, o que por si só é mais que o suficiente para afastar uma parcela bem grande do público alvo, como ele é um anime de slice of life, não é sobre nenhum hobby ou atividade em específica como os milhares de animes escolares sobre clubes que estão sempre presentes a cada nova temporada de animes.
Para [não] melhorar as coisas, Tesagure não possui um fio narrativo que permeie ou amarre a trama. Não, ele é sobre as personagens se reunindo ao redor de uma mesa, conversando sobre os assuntos mais aleatórios possíveis, por vezes sem que as dubladoras sigam um roteiro bem definido, e por vezes improvisando diálogos inteiros a partir de um mero tema.
E não é preciso elaborar muito para perceber porque essa proposta não agrada muitas pessoas. Apesar disso, devido a natureza descompromissada da série, e pelo modo como as dubladoras se adequaram bem a proposta de nem sempre ter um roteiro ditando cada uma das falas de suas personagens, Tesagure pode render boas risadas e ser um bom passatempo em uma tarde de tédio, além de estar repleto de metapiadas sobre certos tropes de anime.
Contudo, não é em Tesagure! Bukatsumono que Tatsuki realmente brilha, e sim no anime dirigido por ele e lançado nessa primeira temporada de 2019. Isso mesmo, na mesma época que a segunda temporada de Kemono Friends.
Independente de se tratar de uma mera coincidência ou algo a mais do que isso, o fato é que Kemurikusa acabou não chamando tanta a atenção do público, ao menos da parcela ocidental, muito provavelmente por desconhecerem a figura de Tatsuki, e por consequência não terem fé em seu trabalho, e pelo enorme preconceito que animações em CGi sofrem por aqui. Algo que provavelmente tenha nascido de um trauma de uma certa franquia que foi adaptada um tempo atrás, através desse modelo de animação. E também porque o uso de computação gráfica em animações tradicionais seja sinônimo de corte de gastos, baixa qualidade de produção e falta de zelo por essas obras, e por bons motivos.
Mas sem entrar em detalhes da trama de Kemurikusa, pois parte da graça da série está em vê-la ser desvendada aos poucos em cada episódio, a série fora inicialmente concebida em 2012, no formato de curta metragem, com 14 minutos de duração, aproximadamente, para ser refeita e lançada como série de 12 episódios de 23 minutos de duração cada.
Além dos episódios normais, Tatsuki também publicou em seu twitter seis curtas de 1 minuto cada, sendo que as cinco primeiras cenas foram publicadas antes do início da série, e uma após o seu termino. Essas cenas ajudam a esclarecer alguns pontos da trama, que são subtendidos durante a série, mas não as chamariam de essências para o entendimento ou aproveitamento de Kemurikusa (E nem sei se houve interesse em legendar essas cenas por parte de algum fansub, já que a série não foi licenciada por aqui).
De todo modo, Kemurikusa carrega consigo muitas das características que chamaram a atenção na primeira animação de Kemono Friends. Tratando-se de um grupo de pessoas em um cenário pós-apocalíptico, que precisam buscar constantemente por recursos (água) para sobreviverem naquele mundo infestado por criaturas robóticas que as atacam constantemente e nem sequer sabem o motivo de estarem ali, ou o propósito daquele lugar.
Kemurikusa pode ser uma experiência confusa de início, bastante estranha, com atuações não muito convencionais, por assim dizer, e com uma animação que vai agradar a poucos, mas que, passando esses obstáculos iniciais não tenho dúvidas de que Kemurikusa seja um dos títulos mais interessantes desse começo de 2019, mesmo considerando a quantidade de outros bons exemplos que tivemos nesse ano até então.
E com isso, quero encerrar dizendo que, se você assistiu o Kemono Friends de Tatsuki e gostou, talvez agora, dois anos depois de seu lançamento, seja uma boa hora de revisitar a série, uma vez que a animação será um obstáculo menor nessa segunda visita. E, é claro, você não pode deixar de assistir Kemurikusa, porque ela é a mais pura sintase do que faz o Tatsuki um diretor tão competente.