31/10/2020
A tradição era relativamente nova. Há cerca de dez anos um grupo de amigos inventara de subir a montanha mais alta da região para ver o sol se pôr entre os picos da serra no final do mês de outubro. Começou com apenas um punhado de amigos, uns seis ou sete, mas com o passar dos anos o grupo foi se transformado e crescendo, se tornando uma verdadeira expedição ao cume.
Eu havia me juntado ao grupo apenas no ano passado, como uma experiência solo, mera curiosidade. Mas é claro, havia amado a aventura e resolvi repetir a dose.
Mas esse ano era diferente. Não sei porque motivo decidiram mudar os planos e, em vez de se despedirem do último sol de outubro, dessa vez saudariam o primeiro sol de novembro, que nasceria no distante horizonte marinho. Por isso, em vez de sairmos do pequeno acampamento no pé da montanha por volta da uma da tarde, após um almoço feito mais cedo, adiamos a saída para meia-noite, o que significaria que teríamos que subir a montanha no escuro, mas em contrapartida tínhamos uma hora a mais para concluir o trajeto habitual.
Apesar da mudança nos planos, o pessoal parecia bem preparado para aquele novo estilo de subida. Além do equipamento que já era de praste — garrafinhas de água, eventual lanche para consumir no caminho, facão para clarear mato no caminho, e até mesmo barracas para montar acampamento — cada um portava a própria lanterna, que possuíam graus diferenciados de iluminação, e até um pequeno grupo inventou de trazer tochas, sabe, aquelas feitas de pano enrolado em longos pedaços de pau.
Tirando a óbvia falta de visibilidade, subir a montanha a noite não parecia uma atividade muito diferente do que fazê-lo durante o dia. Sim, era uma pena não poder ver os pássaros que ocupavam a mata durante o dia, e muitos mais insetos circulavam agora do que no ano passado, mas fora isso estava mais fresco e caminhávamos todos em silêncio, com as lanternas apontadas para o caminho logo a frente, devagar e constante, mas sem nunca perder o ritmo. Claro, estávamos todos tensos porque era uma situação nova para todo mundo, mas com um grupo grande como aquele não é como se uma cobra ou algo assim fosse se jogar na nossa direção ou qualquer coisa do tipo. O próprio som das nossas passadas afastaria qualquer animal da caravana, não havia porque ter medo do escuro…
Ou era o que pensávamos.
Logo após uma hora de caminhada, o silêncio da caminhada fora interrompido por um som agudo, forte e constante vindo do caminho pelo qual havíamos acabado de passar.
— O que foi isso? — Perguntou um homem, não muito atrás de mim, assim que o som cessou. Não pude reconhecer a sua voz, nem vi quem disse por conta do escuro, mas logo alguém respondeu.
— Acho que foi um uivo.
Antes que alguém pudesse questionar a afirmativa, o som se repetiu, dessa vez vinha de mais perto do grupo.
Não havia dúvidas, se tratava mesmo de um uivo, talvez um cão, ou mesmo um lobo… definitivamente um canino.
Por puro instinto, os membros do grupo se aproximaram um dos outros, as lanternas vagavam em direção da mata, a procura do portador daquela voz assustadora.
Nada.
— Foi embora? — Depois de alguns minutos de silêncio alguém o quebrou.
Todos pareciam mais calmos, murmúrios se espalharam pela multidão, mas logo uma voz se levantou entre as outras.
— Não foi nada. Provavelmente um cão selvagem nos notou, mas claramente já foi embora. — O grupo pareceu concordar com a voz vinda da frente do grupo, provavelmente um dos escaladores veteranos daquela montanha. — Vamos em frente. Se esperarmos demais não vamos chegar a tempo de ver o nascer do sol.
Imediatamente, todos ficaram aliviados, logo seguiram a marcha e todos voltaram a ficar em silêncio. Porém, algo parecia diferente. Podia ser apenas impressão minha mais o grupo parecia… menor? Não tinha certeza, mas podia jurar que havia ao menos dez pessoas a mais atrás de mim.
-Não está faltando alguém? — Disse em tom baixo.
Em seguida, duas pessoas olharam para trás, uma a minha frente, outra atrás de mim. Elas pontaram as lanternas para a mata, e logo depois uma delas perguntou:
-Está sentido falta de alguém?
-Ninguém em particular, só parece que tem menos gente.
-Normal. Nem se preocupa. Acontece às vezes, sabe, sempre tem um grupo que sobe em um ritmo menor. Mas não tem com o que se preocupar, a trilha é bem marcada, e a única por aqui, não tem como ninguém se perder.
Mas aquilo ainda me preocupava. Podia não haver nenhum motivo para preocupação, talvez fosse uma situação normal. Não notei nada do tipo no ano passado, mas também era minha primeira vez, algo assim podia facilmente passar por despercebido.
Voltei o meu olhar para frente, apertando o passo. A impressão ainda estava lá. Talvez fosse paranoia, mas também parecia que o grupo da frente estava mais magro. Mas tentei afastar aqueles pensamentos, talvez o grupo a frente não tenha escutado o uivo, talvez tenham continuado a escalada enquanto nós estávamos acuados. Isso, não havia motivo para martelar a cabeça com aqueles pensamentos, era uma situação normal da escalada, nada com o que se….
Um grito interrompeu os meus pensamentos, vinha de frente do grupo, uma mulher, completamente desesperada, e aqueles ao seu redor pareciam estar em choque.
Quando cheguei mais perto pude ver o motivo do desespero. Três homens, ensanguentados, todos mortos, com ferimentos em diversas partes do corpo, incluindo no rosto. Era impossível reconhece-los.
-Meu Deus! O que foi que aconteceu?
Alguém inspecionou o cadáver em mais perto, e sem muito exitar concluiu: — São mordidas, um lobo, não, um grupo de lobos os atacou.
O silêncio triunfou por alguns instante, até que um homem de barba rala e cabelos brancos, vestindo um uniforme militar se pronunciou:
-Sinto muito que isso atenha acontecido com eles. Mas infelizmente não há nada que podemos fazer por eles, a menos que alguém saiba reanimar os mortos…
Todos ficaram em silêncio.
-Foi o que eu pensei. — Disse o homem. — Olha, eu não sei quanto a vocês, mais eu vim aqui para subir essa montanha, e não vai ser uma mero punhado de lobinhos que vai me fazer dar meia volta. Não fui criado para ser covarde. Além disso… — O homem levantou os braços, mostrando a shotgun que tinha em mãos. — Se esse lobo der as caras novamente, vai ser recepcionado na base da bala.
Havia um grupo que claramente concordava com aquele homem, que não estava disposto a abandonar a escalada, e que preferia deixar a tarefa de noticiar aquelas mortes para os outros. Enquanto o restante sabia que o mais seguro era continuar junto ao grupo, ainda que quisessem voltar, ninguém era maluco o bastante para fazê-lo sozinho. Além disso, naquele ponto da caminhada não havia qualquer sinal de operadora, para chamar ajuda seria necessário voltar ao acampamento ao pé da montanha.
Mas não houve tempo para discussão. Com um berro alguém chamou a atenção de todos, e através de gritos e gestos — ali, ali! — guiou os olhares de todos para direção daquilo.
No meio da mata ali estava, dois olhos brilhantes, encarrando a todos, sem fazer nada, a principio. Sua respiração era alta, parecia um rosnado. Era difícil enxergar o seu corpo, mesmo com as diversas lanternas apontando em sua direção, nenhuma delas parecia alcançar o seu corpo. Era apenas um vulgo, grande demais para ser um mero lobo, mais parecido a um urso.
Sem esperar que a besta agisse, alguém disparou em sua direção, um tiro de rifle, mais a frente na trilha. Os olhos brilhantes sumiram, o vulto se fundiu com as sombras da noite.
-Foi embora? — Alguém sussurrou.
A resposta veio logo em seguida. A criatura apareceu entre nós, e lançou-se na direção do dono do disparo. Sem que o homem pudesse reagir, a besta o pegou pelos pés e o levantou, deixando-o de cabeça para baixo.
O rifle caiu no chão, resultando em outro disparo, que atingiu alguém que estavam ali perto.
Agora era possível ver a besta com clareza. Era mais alto que um homem, porém muito magro, tinha pele e face de lobo, mas sua estrutura era de um bípede.
Outros disparos vieram logo em seguida. A besta utilizou o recém capturado como escudo, que recebeu as balas, e logo em seguida sumiu de vista, dando apenas um pulo voltou para a mata.
A partir daquele momento não houve papo, o medo e desespero sobrepujaram qualquer outro sentimento. Desorganizados, cada um correu para um canto da mata, se separando um dos outros.
Os tiros continuaram, e eu também não permaneci no lugar. Corri para frente, para cima da montanha, sem raciocinar se esse era o melhor plano de fuga, apenas segui ao meu próprio instinto.
Corri, corri e corri. Até que encontrei um homem, ferido, encostado em uma árvore. Instintivamente pensei em socorrê-lo, até dei alguns passos em sua direção, mas antes que eu pudesse me aproximar mais o uivo da besta ecoou novamente pela floresta, dessa vez estava muito mais alto do que anteriormente.
Não. Isso não bastaria para descrever a sensação. Não. Parecia que o uivo vinha diretamente da minha cabeça, como se sua voz ressoasse diretamente com o meu cérebro. Meu corpo paralisou por instantes, não conseguir mover sequer um dele, como se meus músculos tivessem virado pedra. Meu olhar se fixou no homem a frente, diferente de mim ele conseguia se mover, porém, agonizava.
Eu corpo rolou para frente, até a cabeça encostar no chão. Pressionava com ambas as mãos o peito, enquanto suas costas pulsavam. Por um momento parecia que algo iria sair de dentro de seu corpo, rasgar a sua espinha dorsal e eclodir para fora. Mas não, o corpo do homem fora aos poucos ganhando volume, seus músculos ficavam mais evidentes, suas unhas se tornavam garras, sua pele encobria-se com um grosso pelo, e sua face se deformava.
O uivo finalmente parou, meu corpo se soltou, e pude me mover novamente. Não esperei para ver a transformação até o fim, e corri na direção oposta a ele.
Mas minhas pernas não eram velozes o bastante para fugir. Assim que o homem morfou-se em besta teve-me como sua primeira vítima e pulou em minha direção.
Ouvindo o barulho de seus passos em virei em sua direção e no processo caí para trás. Por puro instinto levantei meus braços, obstrui um rosto com as mãos, encolhi as pernas contra a barriga, e apontei os pês para cima.
Minhas costas já encostavam no chão, por um golpe de sorte, meus pés atingiram a barriga da criatura, e enquanto ainda rolava para trás estendi ambas as pernas e chutei o monstro no ar, lançando-o montanha abaixo ao mesmo tempo que completava uma cambalhota.
Ergui-me logo em seguida, apoiando ambas as mãos em meus joelhos. Não perdi tempo olhando para trás, apenas torci para tê-lo mandando o mais longe possível com aquele chute improvisado, e com passadas fortes iniciei uma nova corrida.
Não sei de onde tirava tanta força, ou por quanto tempo corri, minha memória estava bastante turva. Só lembro de instantes depois ainda estar correndo no meio da mata. Não pensava em mais nada, apenas seguia em frente, tentava me afastar dos gritos, dos berros, dos tiros e dos rosnados. Mas não adiantava, estavam cada vez mais perto de mim, cada vez mais numerosos, vinham de todos os lados, todas as direções, como uma grande boca que me engolia vagarosamente.
Logo em seguida ali estava eu, no topo da montanha, sem folego para ir a lugar algum. Meu corpo coçava, minhas pernas formigavam, sentia agora uma infinitude de cortes em minha pele, pequenas lascas de madeiras encravadas em meus poros.
Deitei com o lado do corpo em uma pedra que tinha ali, e a reconheci imediatamente. Era a mesma que sumi ano passado para uma bela foto panorâmica. Mas dessa vez não tinha forças para subir na pedra, e apenas sentei no chão ao lado dela, encostando-me com as costas na rocha.
Olhei por cima do meu ombro direito e de relance vi o sol entre as montanhas e imediatamente me veio a memória a visão do ano passado, do sol se pôr… apertei os olhos. Não, aquilo estava errado, não era hora para pôr do sol, pelo contrário.
Novamente levei meu olhar para aquela direção, dessa vez com os olhos menos embaçados, e pude ver com mais clareza o fogo se espalhando pela mata a baixo.
-Não é possível… — Lembrei do pequeno grupo que havia levado tochas para a ida ao cume.
Afastei aquela visão, e movi o meu corpo com dificuldade na direção do oceano, para ver o verdadeiro sol, mas parei no meio do caminho.
Ali estavam eles, entre as árvores, bloqueando qualquer saída possível, como se eu tivesse em condições de sequer tentar fugir… Na aquela alcateia não havia padrão de cores, de altura, nem de tamanho de presas ou garras, mas todos me olhavam da mesma maneira assustadora, olhos famintos.
Elas aos poucos se aproximavam de mim, pareciam não ter pressa, e logo percebi o porquê. Dentre todos os os ferimentos do meu corpo, um pulsava mais forte que os outros. Olhei para o meu braço e vi o bem próximo do pulso uma marca de mordida, bastante inchada, inflamada, pulsava junto com o já fraco bater do meu coração.
Completei o movimento que iniciara mais cedo, e virei o meu corpo na direção do oceano.
Naquele ponto eu já sabia que para mim aquilo era o fim. Vendo o último nascer do sol já sabia. Estava prestes a me tornar mais um deles.
Fechei os olhos, e deixei que o novo sol lentamente queimasse as minhas pálpebras enquanto um novo uivou voltava a ressoar em minha cabeça.