31/10/2019

Marcelo Hagemann Dos Santos
8 min readOct 31, 2019

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Pareceu-me, na hora, uma boa ideia aceitar o convite de meus amigos para uma ida ao cinema naquela noite de Halloween. Quero dizer, esses meus amigos sempre foram meio artistas, digamos assim, com umas ideias bem fora da casinha, mas sempre foram bons rapazes, ao menos na minha presença.

Pois, veja bem, não é como se eu tivesse algo melhor para fazer em uma quinta-feira a noite, afinal não faz tanto tempo que terminei com meu último namorado e como todas as festinhas daquela semana envolviam ele, ou algum cara feliz demais por nosso término para o meu gosto, eu realmente não estava afim em comparecer a nenhuma dessas festas.

Além disso meus amigos obviamente eram providos apenas das melhores das intenções. Estavam preocupados comigo, que eu estivesse muito afetada pelo termino. O que, notoriamente, era bobagem, partiu de mim a vontade de romper a relação… Isso quer dizer que eu teria de inventar uma boa desculpa para recusar o pedido, ou mesmo forçar uma das minhas amigas a mudar os planos, talvez faltar na faculdade. Também não queria inventar algo com a minha mãe porque ela já me aturou demais nesse sentido, o que seria uma alternativa. Então, como daria mais trabalho recusar ao convite, acabei aceitado.

O filme em si não poderia ser menos irrelevante. Não quero dizer que foi um filme chato, não. Mas, nunca fui muito chegada a filmes de terror ou horror, e nunca havia falado naquele diretor, ou nem de qualquer um dos atores envolvidos na produção, mas o título pareceu-me até que bastante apropriado para aquela ocasião. Foram quase duas horas bem engraçadas, ainda que essa não tenha sido a intenção do filme e, vamos admitir, muito mais responsabilidade dos meus próprios amigos do que do tal filme.

De qualquer forma, nosso encontro acabou tão rápido quanto fora programado. Uma boa mudança de ares, mas não quis estender ainda mais além noite porque… bom, ainda era quinta, sexta-feira estava ai e eu precisava acordar cedo, algo que definitivamente teria dificuldade de fazer se aceitasse seguir aquele trio para onde é que eles fossem. Nem quis saber.

Então, me despedi deles ainda na porta do cinema, pois guardara minha moto no estacionamento superior, enquanto meus amigos seguiriam caminho a pé, e por conta disso nossos caminhos se separavam bem a partir dali.

Eles ainda insistiram no convite, disseram que uma noite má dormida não me seria nenhuma tragédia, mas mantive a minha decisão.

Aparentemente, outras seções acabaram por volta daquele mesmo horário, pois muitas pessoas ainda caminhavam dentro do shopping, todas no sentido das múltiplas saídas daquele lugar, aos caixas de estacionamento, e aos seus carros. Famílias com crianças, casais adolescentes, pequenos grupos de amigos, alguns rostos que lembro ter visto dentro da sala de cinema antes e depois das luzes se apagarem. O público parecia grande e obviamente que a fila do caixa estava extensa.

Sabia muito bem que aquilo aconteceria, por conta disso já paguei o meu bilhete antes mesmo de ir para o cinema, algo que deve ter me salvado alguns bons minutos daquele final de noite

Subi alguns lances de escada, costurei meu caminho pelas lojas e em questão de minutos as pessoas que me acompanhavam involuntariamente até o estacionamento foram sumindo, uma atrás da outra, conforme me aproximava de minha moto. O que não foi, de forma alguma, uma surpresa, levando em conta que o estacionamento superior nunca foi exatamente um local popular para guardar sua condução durante o passeio no shopping ou uma ida ao cinema.

Ainda assim, era a minha escolha preferida, porque não apenas encontrava vaga com facilidade ali, como era o único setor do estacionamento que permitia o uso da saída norte do shopping em seu horário de fechamento, algo que me salvava uma grande volta na quadra no retorno para casa.

E já estava perto. Bastava atravessar aquele corredor, apenas uma porta de vidro, e lá estaria minha moto, esperando por mim. E assim o fiz, em poucos passos atravessei o corredor abri a porta, dei mais alguns passos firmes em frente e atravessei a porta já aberta, então atravessei o corredor rapidamente e passei pela porta, em dois passos já havia percorrido todo aquele corredor vazio e chegado na porta e…

Mais um corredor me esperava na minha frente. Aquilo não fazia sentido algum, já deveria estar no estacionamento e, apesar disso, atravessei cinco vezes o mesmo corredor sem nem sequer piscar. Estava eu presa em uma espécie de loop?

Não não. Aquilo não fazia sentido. Eu devo ter errado o caminho em algum momento. Sim, as lojas do shopping mudam de lugar o tempo todo, e eu também não sou uma frequentadora tão assídua dele, eu devo ter virado em alguma esquina mais cedo e saído do caminho marcado previamente pelos seguranças. Isso, em algum ponto eles devem ter esquecido de sinalizar o caminho para o estacionamento com um cone ou uma daquelas correntes de plástico.

Isso, eu estava no lugar errado, talvez estivesse numa seção do shopping restrita para funcionários. Sim, um engano. Fácil de corrigir, só dar a volta e virar na loja certa e já já estou voltando para casa.

Pensando nisso dei a meia volta e um passo a frente, apenas para me sentir sem chão, pisando em falso. A gravidade pontualmente puxou me para baixo e eu cai naquele buraco negro, o corpo todo em queda-livre.

Bati com força no que parecia um chão de pedra. Estava escuro, não consiga ver nada, e todo o meu corpo doía, principalmente minhas pernas, eu devo ter caído em cima delas quando parei ali.

Apesar da dor me levantei rapidamente, não havia porque continuar caída naquele lugar. Não sabiam o quanto eu havia caído, mas pelo menos não tinha nada quebrado em meu corpo, por isso continuei em frente, seja lá onde era a frente.

Agarrei-me nas rochas ao meu lado e segui, acompanhando o fluxo da caverna até encontrar alguma luz. Estava úmido, abafado, o ar não parecia circular, pelo contrário, parecia sufocar minha garganta. Era como se o vento escorresse para fora, mas o fora estava dentro de meu corpo. Pensei em gritar por ajuda, para que alguém me mostrasse o caminho, mas a voz não saiu, meus lábios nem se fizeram o esforço, como se as palavras fossem empurradas da garganta ao pescoço.

Continuei na direção daquela luz amarela, e daquele vermelho que piscava. Estava no estacionamento, talvez no piso do subsolo. Vi uma rampa para carro a frente, junto de um que adentrava naquele piso.

Era um carro preto, não consegui ver quem estava dentro, mas parecia lotado. A cancela abriu e o carro arrancou, descendo aquela rampa com rapidez, cantando pneu, entrando no meu piso e passando perigosamente perto por mim.

Nem sequer reagi quando o cara, ou quem quer que dirigisse aquele carro quase me atropelou. Enquanto ele, rapidamente sumiu de vista. O seu rasgar de rodas ecoou ao fundo. Decidi ignorá-lo, afinal, não precisava de ajuda, podia andar com minhas próprias pernas, ainda mais de alguém que, consciente ou não, quase me matara a pouco. Onde quer que eu estivesse no estacionamento do shopping sabia muito bem que deveria subir para chegar a minha moto.

Então voltei-me a rampa e rapidamente subi para o próximo andar, entrado em um corredor escuro e igualmente confuso. Vi diversas portas, todas de madeira, entreabertas no caminho, passei por elas, seguindo naquele corredor estreito sem pensar direito se estava no caminho certo.

Com passos curtos e rápidos, entrei em saí pelos cômodos, passando por quartos, cozinhas e salas tão estreitas quanto o próprio corredor entre elas, de fronteiras tão tênues que cada uma delas se confundia com a outra.

A vegetação, assim como o desgaste pelo tempo pareciam tomar o lugar. Verdadeiras ruínas de pequenas casas abandonadas. Sucata e escombros se acopulavam por toda parte, ocultando timidamente as paredes daquela caverna.

Apesar disso, aquelas ruínas estavam longe de estarem abandonadas. Homens pareciam viver, ou pelo menos perambulavam por lá. Alguns passavam por mim, como se não me vissem, enquanto outras acompanhavam o meu andar a distância, com os olhos, mas, por algum motivo, não pareciam se incomodar com a minha presença.

Eram sujos, velhos, barbudos e… estranhos. Tinham marcas no rosto, verrugas que vibravam e pulsavam com os movimentos de suas desfiguradas faces que mudavam de forma a cada novo olhar, a cada virada de ângulo. Como se cada segundo uma pessoa diferente ocupasse aquele corpo.

O mesmo podia ser dito de suas alturas. Conforme se aproximavam e se afastavam de mim seus corpos pareciam crescer ou diminuir, aleatoriamente. Mas as alturas se estabilizavam quando paravam de andar e ficavam, por longos segundos, completamente estáticos.

Confesso que quis correr, ou mesmo gritar, dar a volta, sair dali o mais imediato possível. Mas minhas pernas não respondiam, meu corpo não queria voltar atrás. O vento que antes me sufocava e me reprimia agora me empurrava para frente, e faziam minhas pernas andar.

Meu coração bateu mais forte. Um cheio forte de mato queimado invadiu minhas narinas, fazendo-as coçar por dentro.

Olhei em volta, nada. Nem fogo, nem mato, apenas vinhas secas, murchas, provavelmente pela falta de luz daquela caverna. Voltei meu olhar para frente, vi uma fina linha de fumaça dançar por dentre as paredes das casas, que se aproximavam caminho a frente.

Os homens que estavam ali agora sumiram, o caminho era estreito demais para eles, mas, por algum motivo, eu conseguia espremer o meu corpo o bastante para passar por ali. Então me agachei e segui a fumaça para dentro da rachadura, rapidamente a atravessando.

Estava novamente num estacionamento, agora aparentemente a céu aberto. A fumaça que antes era fina e tímida agora ocultava o chão, as estrelas, e o horizonte ao meu redor. Conseguia apenas ver alguns pilares, colunas de concreto pintadas de ambos amarelo e preto.

Lá estava ela, minha moto repousava bem no meio do pátio. Fui na direção dela, apenas para notar que não estava sozinha. Um homem gordo, com músculos disformes, nariz largo, comprido e achatado, estava de pé ao lado do banco. Em sua monoperna o homem alisava o tanque de minha moto com uma de suas mãos, olhando-o fixamente como se analisasse a sua pintura. Com a outra, ajeitava o cachimbo de cabo fino entre seus lábios carnudos, volta e meia bufando e espetando a ponta de seu comprido queixo.

O homem ainda vestia um sobretudo vermelho, velho e descuidado, assim como uma boina de similares adjetivos que parecia que iria cair de seus raros fios de cabelos brancos a qualquer momento.

Assim que me aproximei dele, notou minha presenta, afastando lentamente o cachimbo da boca, virou parcialmente em minha direção. Pela primeira vez naquela noite, desde saí de casa até a volta para minha moto alguém olhou para mim diretamente em meus olhos, verdadeiramente para mim, como se penetrasse em minha alma. E abrindo sua grande boca, gesticulando suas mãos, soprando a grossa fumaça de seu fumo e exibindo seus tortos dentes amarelos disse:

-Tenha uma boa noite.

A voz veio de trás, me pegando de surpresa. Quando percebi estava em frente da minha moto, segurando meu capacete com ambas as mãos, já com a chave posta na ignição da moto, mas sem tê-la virado.

Levantei um pouco o rosto e olhei em direção da voz gentil, encontrando um rosto cansado de um homem acima do peso, vestindo um uniforme azul escuto com pequenas tiras amarelas ao redor dos pulsos e na altura do quadril em sua jaqueta.

Recompus-me rapidamente, e lhe respondi com um sozinho. — Obrigada. E me desculpe por te manter aqui até tão tarde.

Ele apenas agradeceu a preocupação, mas disse que seu turno ainda não terminara, e que ainda tinha alguns itens da rotina para realizar antes de fechar aquela parte do estacionamento. Então vesti meu capacete, fechei minha jaqueta e liguei a moto, que respondeu dando a partida instantaneamente.

Novamente, acenei para o homem e retornei meu caminho para casa.

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Marcelo Hagemann Dos Santos
Marcelo Hagemann Dos Santos

Written by Marcelo Hagemann Dos Santos

Rapaz de humor duvidoso que entrou essa de escrever sobre animes recentemente. Ex-aluno de filosofia e graduado em Letras, mas sempre estudando.

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